Onde o ruído da metrópole ainda respira lembranças de Gaia
Para uma certa religião de um
mundo distante, o Planeta é como um ser vivo, de onde provêm e para
onde retornarão todas as formas vivas, após esse interstício que é
a experiência terrena. A heterogeneidade das formas apenas esconde
sua unicidade atômica. A relação do macro com o microcósmico
reflete a vinculação dos homens com natureza que os rodeia, e sua
cultura é nada mais que uma expressão espiritual de um elo com a
terra, também chamada de Gaia. Para os humanos conscientes de seus
vínculos telúricos, o que lhes resta é, impelidos para o
nomadismo, a busca simbólica e efetiva de uma Terra Prometida, em
que se realizaria o encontro místico com Gaia. No entanto, na
atualidade desse mundo, tal religião já perdeu o seu significado,
posta de lado pela tendência ao sedentarismo e pela agitação da
vida moderna das novas gerações. Essas que, na medida em que vão
se organizando e evoluindo social e materialmente, se baseiam numa
cultura que caminha para a autodestruição, de si e do planeta, e
para a selvageria tecnológica.
Séculos passaram, e a vida atual
no Planeta é regida pela atividade monopolística de uma grande
corporação, que trabalha na exploração dos recursos naturais da
terra e os vende para a massa cada vez mais miserável que se agrupa
em torno de metrópoles cyberpunks. Na maior dessas
metrópoles, Midgar, uma história de heróis se esconde no
underground. O líder de um grupo eco-revolucionário prepara
um assalto para explodir uma usina de energia Mako, coração
funcional da cidade. Após um voo panorâmico por Midgar, a câmera
desce para revelar um trem que se aproxima do distrito industrial, no
qual estão infiltrados os terroristas com os quais o jogador terá
de se identificar no início dessa história.
É a partir desse núcleo ativo de personagens que o universo de Final Fantasy VII se desenvolve, integrando outros personagens em outros contextos e expandido horizontes, ganhando aos poucos uma dimensão holística que vai para muito além de Midgar e envolve o destino do próprio Planeta, comprometendo nele a totalidade de suas criaturas, dimensão que abarca a própria ideia de Gaia.
É a partir desse núcleo ativo de personagens que o universo de Final Fantasy VII se desenvolve, integrando outros personagens em outros contextos e expandido horizontes, ganhando aos poucos uma dimensão holística que vai para muito além de Midgar e envolve o destino do próprio Planeta, comprometendo nele a totalidade de suas criaturas, dimensão que abarca a própria ideia de Gaia.
Mundos ficcionais
Final Fantasy VII debutou no
PlayStation em 1997, e sua “novidade” estava em criar um clima
convincentemente cinematográfico sobre a base dos já clássicos
RPGs eletrônicos, envolvendo o jogador numa experiência narrativa
que marcaria para sempre a popularidade do nome Final Fantasy.
O RPG eletrônico nasce como uma tentativa de emular nos computadores
e consoles a experiência de aventura típica dos RPGs de mesa. No
início a coisa era mesmo muito rudimentar. A jogatina se limitava a
assumir o controle de um avatar digital, que percorria dungeons
com o intuito de caçar monstros, coletar itens, explorar labirintos,
evoluir seus atributos etc. Uma evolução decisiva é introduzida
com a apropriação japonesa desse tipo de jogo. Já em 1986 nasce o
game Dragon Quest, responsável por popularizar bastante o
gênero entre os japoneses. No ano seguinte, Final Fantasy
é lançado, um produto aparentemente mais bem acabado que seu
predecessor, responsável por salvar a Squaresoft da bancarrota e
iniciar uma série de games de sucesso. A partir daí, o role
playing videogame passa a ser massivamente um produto sinônimo
de criação japonesa, filtrado pela visão de mundo peculiar dos
orientais.
Na verdade, há tradicionalmente uma cisão entre duas concepções de RPGs para videogames, que se convencionou dividir entre ocidentais e orientais. Os RPGs ocidentais costumam investir mais na mecânica, com designs em que há um maior desenvolvimento de habilidades e equipamentos, e aventuras com maior liberdade de escolha e possibilidades, às vezes até narrativas não-lineares, com múltiplos finais. Os RPGs orientais, em contraponto, investem muito mais na ambientação, no design de personagens e dos cenários, criando uma trama que, ainda que seja quase invariavelmente linear, carrega uma maior dramaticidade, retocando os heróis e adversários com traços mais propriamente vivos e humanos. Os RPGs japoneses, sobretudo os da saga Final Fantasy, são reconhecidos por apresentarem uma narrativa empolgante, que persuade o jogador a se interessar afetivamente por aquele mundo virtual e querer descobrir o seu desfecho e destino.
Um produto como Final Fantasy é algo parecido a uma colcha de retalhos, um mosaico pouco convencional de colagens advindas de várias influências da cultura pop circulante no país que o produz, além de ser um triunfo no domínio de técnicas de informática e computação e de arte visual digital. De todo modo, a Squaresoft, empresa originalmente desenvolvedora da saga Final Fantasy, conquistou ao longo dos anos a autoridade de possuir uma marca singular, um estilo, uma identidade própria, não presente em nenhum outro produto semelhante. A era de ouro da Squaresoft acompanhou o contínuo refinamento e amadurecimento da série Final Fantasy, processo que culminou nas duas trilogias principais: os títulos IV, V e VI (para o SNES), e VII, VIII e IX (para o PlayStation).
Na verdade, há tradicionalmente uma cisão entre duas concepções de RPGs para videogames, que se convencionou dividir entre ocidentais e orientais. Os RPGs ocidentais costumam investir mais na mecânica, com designs em que há um maior desenvolvimento de habilidades e equipamentos, e aventuras com maior liberdade de escolha e possibilidades, às vezes até narrativas não-lineares, com múltiplos finais. Os RPGs orientais, em contraponto, investem muito mais na ambientação, no design de personagens e dos cenários, criando uma trama que, ainda que seja quase invariavelmente linear, carrega uma maior dramaticidade, retocando os heróis e adversários com traços mais propriamente vivos e humanos. Os RPGs japoneses, sobretudo os da saga Final Fantasy, são reconhecidos por apresentarem uma narrativa empolgante, que persuade o jogador a se interessar afetivamente por aquele mundo virtual e querer descobrir o seu desfecho e destino.
Um produto como Final Fantasy é algo parecido a uma colcha de retalhos, um mosaico pouco convencional de colagens advindas de várias influências da cultura pop circulante no país que o produz, além de ser um triunfo no domínio de técnicas de informática e computação e de arte visual digital. De todo modo, a Squaresoft, empresa originalmente desenvolvedora da saga Final Fantasy, conquistou ao longo dos anos a autoridade de possuir uma marca singular, um estilo, uma identidade própria, não presente em nenhum outro produto semelhante. A era de ouro da Squaresoft acompanhou o contínuo refinamento e amadurecimento da série Final Fantasy, processo que culminou nas duas trilogias principais: os títulos IV, V e VI (para o SNES), e VII, VIII e IX (para o PlayStation).
Na
época de seu lançamento, o frenesi em torno de Final
Fantasy VII não foi casual.
Alguma coisa muito especial foi alcançada ali. O game demonstrava
que era possível criar nos videogames uma experiência imersiva que
rivalizava com o cinema em termos de narrativa, ambientação,
complexidade, beleza visual, e mesmo em sua ambição um tanto
megalomaníaca. Certamente que essa obra contém a marca de seu
tempo, e seu apelo não pode ser justificado sem um certo encanto
pelo nome e pela proposta. Porém, o desafio estava lançado: Final
Fantasy VII se tornou então o
maior exemplo do grande potencial que havia nos games no sentido de
arquitetar um mundo ficcional autônomo e explorar uma história para
ele, mundo esse que atendia a seu modo ao já milenar critério
crítico de verossimilhança.
O hype da época
elogiava o aspecto cinematográfico
de Final Fantasy VII,
mas minha opinião, que apenas se esclareceu para mim ao longo dos
anos, é que o apelo que esse tipo de game ainda pode exercer hoje
consiste mais em sua atmosfera romanesca.
Os RPGs da tradição japonesa, em sua evolução naquilo que
realizam como narrativa, seriam talvez melhor compreendidos em seu
parentesco, aparentemente mais distante, com a literatura.
A biblioteca virtual
Talvez não seja exatamente
necessário dizer que a inspiração visual para o blog venha de
Final Fantasy VII. Quem conhece, mesmo que vagamente, a saga
Final Fantasy, sabe que Midgar é a cidade gigantesca,
futurista e decadente onde se iniciam os eventos do sétimo jogo da
série. Mas talvez a inspiração seja também de outro nível, e eu
só possa referi-la entrando em detalhes pessoais. Durante toda a
minha infância, minha cultura e paixão consistia basicamente nos
videogames. Meus pais tiveram uma locadora no interior de São Paulo,
Pindamonhangaba, nos meados dos anos 90. Foi lá que tive acesso a
uma parte considerável do acervo de jogos disponíveis para o Super
Nintendo e PlayStation. Em algum momento de 1998, meu pai apareceu na
locadora com os três CDs da versão americana de Final Fantasy
VII, convencido da qualidade
técnica do game, tão retumbada unanimemente pelas revistas da
época. Eu nunca tinha visto a coisa ao vivo, tampouco jogado algum
game da série. Obviamente, a nova aquisição de meu pai não fez
sucesso na locadora; apesar da linda abertura, as pessoas não
entendiam o conceito, não tinham paciência para as situações de
diálogo, achavam a ação muito monótona, não conseguiam ou não
queriam avançar a parte inicial, julgavam um tanto ridículos os
gráficos dos personagens in-game,
etc. Os RPGs não são afinal para se jogar com pouco tempo, não são
imediatamente acessíveis. Mas como eu tinha acesso, tempo e
paciência para a coisa, era o jogador ideal de Final
Fantasy VII.
Também tinha uma certa predileção por histórias de aventuras, sem ter nenhuma perseverança em leituras que não fossem de revistas de videogames. Livros foram objetos que definitivamente não fizeram parte de minha infância; li penosamente apenas uma meia dúzia deles até os meus quinze anos. Ao mesmo tempo, tinha grande vontade de criar histórias, e não era de todo desajeitado com a escrita, pelo menos em comparação com a média dos colegas de escola. Fato é que, por todo esse conjunto de variáveis improváveis, Final Fantasy VII se tornou um universo para mim. E depois os outros jogos da série, e depois uma boa parte dos outros RPGs da época. Eu entendia intuitivamente que era o tipo de jogo que se afinava melhor com minha imaginação de garoto tímido, sonhador e um tanto caipira.
Há algo que todos que cresceram jogando videogames podem atestar e que facilmente é confundido por uma certa tendência à nostalgia. A experiência com os videogames tem um poder especial, não igualado por nenhuma outra mídia, de se colar à memória de uma maneira mais radical e formante; de modo que, com uma frequência às vezes aterradora, as memórias de locações virtuais se confundem com memórias de locações reais, e as memórias de umas e outras se interpenetram e se implicam, se provocam e se referem, como se todas fizessem parte de um mesmo passado comum, vivido como se fossem experiências de um mesmo nível e natureza. Isso é mais verdade para a experiência com jogos como Final Fantasy VII, que pedem a dedicação de algumas dezenas de horas para se familiarizar com seu mundo, suas regras, seus desenvolvimentos, sua totalidade autônoma e particularmente coesa.
Também tinha uma certa predileção por histórias de aventuras, sem ter nenhuma perseverança em leituras que não fossem de revistas de videogames. Livros foram objetos que definitivamente não fizeram parte de minha infância; li penosamente apenas uma meia dúzia deles até os meus quinze anos. Ao mesmo tempo, tinha grande vontade de criar histórias, e não era de todo desajeitado com a escrita, pelo menos em comparação com a média dos colegas de escola. Fato é que, por todo esse conjunto de variáveis improváveis, Final Fantasy VII se tornou um universo para mim. E depois os outros jogos da série, e depois uma boa parte dos outros RPGs da época. Eu entendia intuitivamente que era o tipo de jogo que se afinava melhor com minha imaginação de garoto tímido, sonhador e um tanto caipira.
Há algo que todos que cresceram jogando videogames podem atestar e que facilmente é confundido por uma certa tendência à nostalgia. A experiência com os videogames tem um poder especial, não igualado por nenhuma outra mídia, de se colar à memória de uma maneira mais radical e formante; de modo que, com uma frequência às vezes aterradora, as memórias de locações virtuais se confundem com memórias de locações reais, e as memórias de umas e outras se interpenetram e se implicam, se provocam e se referem, como se todas fizessem parte de um mesmo passado comum, vivido como se fossem experiências de um mesmo nível e natureza. Isso é mais verdade para a experiência com jogos como Final Fantasy VII, que pedem a dedicação de algumas dezenas de horas para se familiarizar com seu mundo, suas regras, seus desenvolvimentos, sua totalidade autônoma e particularmente coesa.
Midgar |
Certamente,
a experiência infantil com RPGs eletrônicos cumpriu um papel
fundamental na minha futura conversão à literatura. Midgar
se tornou para mim uma cidade tão viva quanto outras locações que,
meramente pelo fato de serem consideradas “reais”, merecem o
status de serem chamadas de “vivas”. Certamente que há um
flagrante quixotismo nesse meu modo de falar dessas coisas, mas ao
longo dos anos também deixei de me importar com o juízo geral sobre
a coisa. Algumas minudências nos definem muito mais do que os
grandes fatos da vida que em geral apresentamos como credenciais.
Existe uma série de outras entidades meramente imaginárias que as
pessoas consideram reais apenas pelo fato de existirem palavras na
língua para elas, e no entanto a “realidade” dessas coisas não
é julgada segundo a ontologia, mas tão somente pela sanção social
que o modo de falar sobre elas confere. A cidade de Midgar me parece
tão real na minha memória quanto o bairro em que eu passei a minha
infância, e isso me é o suficiente para fazer dela um símbolo,
figura sempre mutante de um lugar a partir do qual se possa pensar a
condição humana, a adaptação dos homens às mais diversas e
adversas circunstâncias, e sua tendência inelutável de sempre
olhar para além com os olhos de aqui, com os meios que são
disponíveis e com os meios que possam ser alcançados e até mesmo
inventados.
Até onde eu consiga me recordar, existe somente uma biblioteca em Midgar, que fica localizada no 62º andar do Shinra’s Building, sob responsabilidade do prefeito da cidade, que, sem mais nada para fazer, assume a função inócua de bibliotecário. No jogo, a biblioteca em si é bastante pequenina e pouco interessante, serve apenas para resolver um puzzle que o prefeito propõe, e nada mais. Outra biblioteca, que não está em Midgar, é mais interessante, aquela da cidade de Nibelheim, onde Sephiroth perde a sanidade após dias seguidos pesquisando seus volumes empoeirados em busca de descobrir o passado do Planeta. Gosto de imaginar a existência de uma biblioteca destas em Midgar, num daqueles distritos não visitados pelos personagens, cercada pelos onipresentes aparatos mecânicos e eletrônicos, e pelo contraste entre pobreza e luxo inspirado no universo ciberpunk. Seria numa biblioteca como essa que eu estaria lendo e escrevendo os textos de meu blog, um lugar excessivamente particular e ao mesmo tempo vagamente plausível, mirando a loucura da metrópole ao redor e pensando para além dela.
Até onde eu consiga me recordar, existe somente uma biblioteca em Midgar, que fica localizada no 62º andar do Shinra’s Building, sob responsabilidade do prefeito da cidade, que, sem mais nada para fazer, assume a função inócua de bibliotecário. No jogo, a biblioteca em si é bastante pequenina e pouco interessante, serve apenas para resolver um puzzle que o prefeito propõe, e nada mais. Outra biblioteca, que não está em Midgar, é mais interessante, aquela da cidade de Nibelheim, onde Sephiroth perde a sanidade após dias seguidos pesquisando seus volumes empoeirados em busca de descobrir o passado do Planeta. Gosto de imaginar a existência de uma biblioteca destas em Midgar, num daqueles distritos não visitados pelos personagens, cercada pelos onipresentes aparatos mecânicos e eletrônicos, e pelo contraste entre pobreza e luxo inspirado no universo ciberpunk. Seria numa biblioteca como essa que eu estaria lendo e escrevendo os textos de meu blog, um lugar excessivamente particular e ao mesmo tempo vagamente plausível, mirando a loucura da metrópole ao redor e pensando para além dela.
A Biblioteca de Midgar está, portanto, aberta pra visitações, e é de lá de dentro que eu emito esse correio, a quem quer que se interesse pelas coisas que aqui escrevo.
Só vim aqui para aplaudir as minudências que te definem. De fato, são a cereja que deixa o bolo confuso de cada ser humano muito mais interessante!
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