sábado, 11 de fevereiro de 2012

O último olhar de Argos



“Argos recebeu o que lhe cabia, o pretume da morte.
Ao menos reviu Odisseu, depois de vinte anos.”
Odisseia, Canto 17, 325-326: tradução de Donaldo Schüler

Para designar a nobreza de alguns atos e comportamentos animais, ainda não inventaram nome justo. “Fidelidade”, “abnegação”, “amizade”, todos são nomes humanos, demasiado humanos para caberem naquilo que não entendemos. Talvez por trás do universo constelado de sonhos daqueles que vivem ao lado de homens sem trocarem uma só palavra, num silêncio interminável, grasse unicamente a moeda do interesse mediando todas as relações, sem a mínima exceção. Para mim, nenhum problema, creio no seguinte: a espécie é interessada; o indivíduo é ingênuo.

Aquilo que chamamos hoje pelo nome de “cachorro”, um dia foi alguma coisa selvagem, não admitida no convívio humano, andando em grupos, cercando restos humanos, e fugindo quando era dia do caçador. Filhotes órfãos mereceram a misericórdia dos “civilizados” e, trazidos para dentro de casa, ali levaram para adiante a preservação de sua espécie. Como todos os animais domésticos, sua história começa com a violência, com a captura da natureza, com o convívio forçado entre dessemelhantes. Seria sim muita ingenuidade crer que o animal doméstico não tenha nenhum interesse em se utilizar do trabalho humano, se ele próprio vive subjugado por expedientes estranhos à sua origem. Afinal, ele precisa sobreviver de alguma forma nesse mundo do trabalho, alheio a sua essência expropriada, como um estrangeiro procurando função numa terra que não é a dele. Conhecemos gerações e gerações de cachorros que foram úteis para a comunidade humana, como caçadores, farejadores, guardiões, cortesãos etc. Mas a história das espécies, muito aquém de qualquer teleologia, nunca se preocupa com o bem-estar dos indivíduos singulares. Para se adaptar a cada nova função, demanda-se toneladas e quilolitros de sofrimentos. E quando não mais resta qualquer utilidade para o animal domesticado, nem o interesse próprio o salvará da extinção. A dança das espécies faz o seu trabalho de verdugo, abrindo passagem no meio da economia destrutiva da vida. Pois então, ninguém viu o cachorro chorar pelo seu próprio fim iminente. Ele não tem lágrimas, ele não tem palavras. E provavelmente, não deve saber que o seu destino é finar.

Amor de cachorro talvez seja o reconhecimento pela tolerância humana. A condição de estrangeiro a buscar função numa terra estranha pressupõe nada menos que a humildade. Cachorro sabe que ele é mero objeto na mão de homens, que podem dispor-se dele para fazerem quase tudo. Podem vendê-lo, podem torturá-lo, podem abandoná-lo, e também podem amá-lo. Cachorro sabe que o amor de homem nunca é exatamente uma troca. Se parece mais com a operação de investimento: sujeita às variações do mercado, podendo nunca dar lucro, muitas vezes até resultando prejuízo. E no entanto, o cachorro não tem sindicato que o defenda, cachorro não tem consciência de classe, não faz greve. No jogo do amor, ele simplesmente não tem nada a perder, e por isso quase sempre aposta tudo. Tamanha fragilidade às vezes faz esquecer que a imagem do animal sempre foi a de um corpo estranho na comunidade, subtraído da natureza para integrar à civilização na condição de servo, de escravo, ou na condição de mendigo, de vagabundo. Mesmo quando a imagem do animal desponta com selvagerias, trata-se de problemas domésticos, de coisas que fugiram ao controle, coisas ainda não “humanizadas”. O esforço de humanização dos animais é o ato ancestral e civilizatório de dobrar instintos para fins humanos. Não é fazer o homem ir de encontro ao animal, mas o contrário, fazê-lo vir ao homem. O cachorro, desde que nasce entre homens, sabe que vive sob o jugo da dominação. Na sua escala de valores, se existe algo parecido com isso, a liberdade deve brilhar com cores muito mais modestas. O cão humanizado é uma paródia de animal, pois não é homem nem é animal. Pode até ser engraçado e bonitinho pra quem vê de fora, mas de dentro sua condição é triste.



Odisseu, ao voltar a Ítaca depois de vinte anos de ausência, disfarçado de mendigo para não causar alarde, está numa posição marginal em relação à sociedade na qual ele é rei por direito. Nessa situação, ele não encena mais o guerreiro, o conquistador, o líder que ele encarnava até chegar ali. Odisseu disfarçado e submisso é o símbolo do olhar deslocado, capaz de observar melhor a condição dos outros seres devido à sua fragilidade inerente. Desde que o homem é homem, civilização também abriga o momento da reflexão, também é o esforço, mesmo que minoritário, mesmo que a posteriori, de ir de encontro àquilo que nos é alheio. E no palco das identidades humanas, em que o que vale é a distinção das aparências, Odisseu aparece como agente duplo, por um lado desprezado por quase todos, por outro lado atilado para o julgamento. Ninguém é capaz de saber que por trás daqueles andrajos se esconde a figura imponente de um rei. Todos tem olhos apenas para o visível, e nesse reino impera geralmente o disfarce e a mentira. Apenas uma criatura, entre tantas, identifica o Odisseu imutável, sem precisar de provas, sem ouvir a narrativa da origem, da linhagem, das desventuras, sem pedir outras credenciais que não a mais imediata presença. Argos reconhece Odisseu tão logo ele aporta em seu palácio, e em vista do retorno do dono, impossibilitado de mover-se na velhice, balança o rabo, abana as orelhas, e morre.

Para além da memória intocada e do olfato privilegiado, Argos se diferencia de todos os outros itacences na necessidade do retorno de Odisseu. Argos não precisa de que Odisseu retorne para restaurar o estado de coisas anterior à ausência do herói, para dar um rumo à situação suspensa quanto ao casamento de Penélope, para botar ordem nos pretendentes que infestam a casa do sumido rei, para nada disso. Argos precisa de que Odisseu retorne para conformar a sua condição de cachorro, Argos precisa de Odisseu para morrer. Ao vê-lo inane largado no esterco, Odisseu, sensível para compreender a condição daqueles que, como ele naquele momento, circulam na margem da aceitação, chora, e esconde o choro para não ser desmascarado. Argos sem Odisseu era como todos os outros cães sem função que vivem no seio da comunidade humana, sujeitos aos desmandos da orfandade, do abandono, da solidão, da indigência. Argos sem Odisseu é símbolo do indivíduo sujeito à sua própria ingenuidade, cuja história desafortunada da espécie já não o dota de outros meios para lutar em seu interesse. O último olhar de Argos é o olhar do reconhecimento de que ao menos a função de cachorro retornou para ele, ao menos a função de apêndice do homem. Argos ama Odisseu dessa maneira, e com esse reconhecimento ele pode morrer...


Por não estarmos geralmente como o Odisseu trajado de mendigo, para nós é bastante difícil compreender o sentimento canino. E então, domesticamos até o nome desse sentimento, e dizemos :“fidelidade”, “abnegação”, “amizade”. Mas para ser um pouco mais exato, ainda não existem palavras adequadas. Se a história de nossa espécie se baseia sobremaneira na dominação, inclusive na dominação de outras espécies, parte dessa história está inseparada da reflexão sobre os efeitos do poder. Em toda escala de relações humanas, a justiça pede espaço para entrar, principalmente no âmbito doméstico. Se o ser humano não é capaz de reconhecer a alteridade animal, então também não é capaz de respeitar a própria espécie em sua diversidade. A luta ética se faz em todas as frentes, em todos os instantes. Sem isso, não temos razão para orgulho em sermos chamados “animais políticos”. Sem isso, somos APENAS animais, e do tipo mais violento, predador.

Assim espero que, se é inevitável que Argos sobreviva abrigado em nossa Ítaca, que ele possa ao menos reconhecer Odisseu, num último olhar, anterior à morte. Nunca saberemos o que esse olhar significa, e no entanto ele nos diz respeito tanto quanto todas as ilhas para além do Mar Oceano.

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