domingo, 2 de setembro de 2012

O horizonte comum entre Cesário Verde e Alberto Caeiro


Talvez seja possível traçar uma relação entre Cesário Verde e Alberto Caeiro, para além da ligação mais imediata que se pode notar entre eles. Ricardo Reis, num prefácio a uma reunião dos Poemas Completos de Alberto Caeiro, diz que a obra em questão é: “dedicada por desejo do próprio autor à memória de Cesário Verde”. O mesmo Alberto Caeiro, em ilustre passagem do seu “Guardador de Rebanhos”, escreve: “Ao entardecer, debruçado pela janela,/ E sabendo de soslaio que há campos em frente,/ Leio até me arderem os olhos/ O livro do Cesário Verde.” Este é o único autor citado por Caeiro em toda sua obra, e a única leitura referida de maneira positiva. Essa escolha não deve ser fortuita, e o objetivo deste pequeno ensaio é tentar elucidá-la de alguma forma.

      Para começar, basta dizer que a poética de Cesário Verde é dificilmente classificável no contexto da literatura portuguesa. Por um lado, Cesário Verde se vale de um sentimentalismo eminentemente romântico, centrado nas sensações e impressões que um sujeito particular vive perante certas experiências. Por outro lado, os temas trabalhados por Cesário Verde fogem completamente à estética romântica, com seu prosaísmo e coloquialismo que o aproximam extraordinariamente dos modernistas. Cesário produz imagens citadinas marcadas por um realismo filtrado pelo estilo direto e caleidoscópico de sua poesia. Seu trabalho composicional apresenta resultados que podem ser comparados aos das artes plásticas, em sua tentativa de criar paisagens da vida cotidiana. Portanto, a poesia de Cesário está voltada para o sentido da visão, encarnada na figura do flâneur, que perambula pela cidade registrando suas impressões.


         Alberto Caeiro, por sua vez, produz um projeto poético e existencial que traz à tona a primazia das sensações e das percepções no contato com a realidade. Caeiro pretende, de maneira indireta, fazer uma crítica radical ao hábito intelectual metafísico que de certa forma sempre esteve no horizonte do pensamento ocidental. Sua poesia representa uma alternativa a esse modelo de pensamento, com seu retorno ao primitivismo pagão e com sua semelhança à ingenuidade infantil. Para realizar tal projeto, Caeiro se vale de uma linguagem polida e coloquial, extremamente próxima à prosa, sem construções sintáticas complexas e bastante referencial a elementos da natureza. Entre os sentidos aguçados do poeta Caeiro, a visão está sempre em primeiro plano, como sendo o sentido mais imediato de que o ser humano dispõe. Para Alberto Caeiro, é como se a visão fosse o maior atestado de um mundo não metafísico, como expresso no verso: “Pensar é estar doente dos olhos”.

          Afora as diferenças estilísticas mais evidentes, podemos apontar para o fato de que as duas poéticas encenam um primado do sentido da visão, como se esta fosse a perspectiva mais privilegiada sob a qual o homem se relaciona com o mundo. Para Cesário Verde, é importante ao poeta que, em sua condição de flâneur, ele tenha os olhos sempre atentos a cada elemento da cidade que possa ser transformado em matéria de poesia, numa abertura quase total às diversas sensações visuais que a cidade é capaz de provocar. Em Alberto Caeiro, a visão é a experiência central do sujeito, porque dá sentido à superficialidade real do mundo, e privilegia o contato experiencial do homem com as coisas, em contraposição à irreal profundidade metafísica do mundo, tão endossada pela história do pensamento.

          Além disso, o que os dois poetas têm em comum é a consciência de que, por mais que a visão seja um sentido privilegiado, ela não deve servir de instrumento para edificar uma determinada moral. Os dois poetas são amorais, no sentido em que eles não transformam sua visão de mundo num modelo a ser seguido por todos os outros homens; antes, sua perspectiva é somente mais uma, entre tantas possibilidades. Cesário Verde não julga a miríade de homens que habita a cidade que ele pinta em seus versos: sua cidade é como um organismo estável, funcionando da maneira como deve ser, com suas virtudes e mazelas próprias. Alberto Caeiro não transforma sua visão numa cosmovisão, pois sabe humildemente que sua forma de ser e de ver o mundo é simplesmente natural, como é natural as outras formas de ver e ser.


           Por fim, imaginando a possibilidade de considerar as poéticas de Cesário e Caeiro como uma continuidade, podemos dizer que Caeiro encontrou em Cesário um prenunciador de sua singular poética. Para poder afirmar um contemporâneo primitivismo pagão, era preciso encontrar um poeta que estivesse irrestritamente aberto às sensações que o mundo moderno oferecia, com suas doses cavalares de experiências contraditórias. Cesário Verde era esse poeta, figura estranha no seio da literatura portuguesa. Caeiro se aproveitou do seu protagonismo e radicalizou a experiência de abertura sensitiva. Transformando-se num mestre poético cujo projeto ainda repousa como promessa irrealizada. Enxergar o mundo sem os preconceitos que assombram atavicamente nosso olhar.


Nota: Apresentei esse texto como trabalho de conclusão da disciplina Literatura Portuguesa III, ministrada pelo querido professor André Ramos no primeiro semestre de 2011, no Instituto de Letras da UERJ. Creio que fui generosamente avaliado em função desse trabalho. No entanto, deixo-o aí para olhos curiosos e desocupados. Mas não sem a ressalva do próprio Ricardo Reis: "Não se pode comentar, porque não se pode pensar, o que é direto, como o céu e a terra; pode tão-somente ver-se e sentir-se."
          Passo por essa vida vendo e sentindo, com a íntima convicção de que dizê-lo é, de certa forma, falseá-lo. Há os que falseam magnificamente, como um Fernando Pessoa, mas graças a Deus esses são uns poucos. Pelo menos sobra mais céu e mais terra para mim, e também a sensação de uma inexorável solidão.

sábado, 9 de junho de 2012

A morte do Pequeno Príncipe


O Pequeno Príncipe existe como para cumprir um destino trágico em nosso mundo. Desde sempre sua finalidade é simplesmente morrer. Quando a infância aparece diante de nós e nos ilumina de graça, nossa reação condicionada é ignorá-la e limitá-la a seu nicho específico. Prescindimos da infância para depois erguer em sua homenagem um altar chamado nostalgia.

O Pequeno Príncipe sai de seu planeta por amor à rosa, seu objeto singelo, seu capricho, sua razão de ser. Nessa viagem, faz pausas em planetas habitados por adultos em suas representações neuróticas, afeitas à vulgaridade do cotidiano. O amor à rosa da infância é incapaz de ser transmitido ao mundo adulto justamente porque está além ou aquém de palavras. Dizer o amor é esterilizá-lo, é pô-lo numa cela abstrata de ideias, estranha à sua obviedade singela. Cada adulto em seu planeta é um mundo com claras limitações. O planeta do Pequeno Príncipe é limitado também, mas, ao contrário dos adultos, em sua pequenez não há a pretensão de abarcar o universo numa lógica qualquer. Cada adulto, de dentro de sua redoma planetária, parece ter uma palavra final e absoluta para a infinitude que o engole. Todos são tão completamente cheios de certezas, que é preciso minimamente a interlocução com uma criança para que se revele sua ridicularidade relativa. Mas o Pequeno Príncipe nada tem a dizer a essas pessoas; ele recorre sempre ao silêncio, à não-palavra, à perplexidade, ao mistério: isso que toda infância tem de mais sagrado.

A viagem do Pequeno Príncipe deságua na Terra, essa imensidão de adultos, nem por isso menos limitada. Quem há de, nessa imensidão, se solidarizar com a história de uma rosa singela num planeta distante? Nosso mundo realista varre a fantasia para debaixo do tapete, em nome de inumeráveis pragmatismos. Apenas o narrador-personagem de Saint-Exupéry trava uma amizade ligeira com a infância, uma amizade melancólica como que pressentindo o fim iminente, cheia de saudades do que já se vai perdendo. Porém, mesmo ele já não pode ajudar o Pequeno Príncipe, chegou tarde demais à fonte de toda graça da vida, também se tornou nostálgico. O deserto é o que resta ao Pequeno Príncipe, e lá é onde ele vai encontrar a serpente. O ser da língua bífida, que diz coisas sobre as quais não se pode confiar plenamente. Ao fim de tão longa e desesperançada viagem, sua mordida é a única chance de fazer o Pequeno Príncipe voltar ao seu planeta pequeno e fantástico, voltar ao seu amor à rosa. Sua mordida dará fim a essa jornada inútil no reino dos homens úteis, com o preço evidente da morte.


Na correria de nossas vidas importantes para nós mesmos, não percebemos os pequenos príncipes que nos rodeiam, iluminando a vida de outros sentidos. Quando eles esmorecem, atribuímos sua existência a algum ideal passado, sempre distante de nós. Resta a todos aqueles que viram algum pequeno príncipe passar por essa terra um gosto ligeiro da infância que vamos perdendo. A morte do Pequeno Príncipe é uma necessidade para se estar no mundo brutal a que nos acostumamos. Um mundo sem graça e desonesto, ausente do amor à rosa por quem daríamos a vida.


Nota: Escrevi esse texto no final de ano de 2009, após a leitura do referido livro, no meio de uma de inumeráveis depressões. Portanto, peço que tenham pena, não de mim, mas do resultado infausto que aqui se encontra. Perdoem o seu tom que, não raras vezes, resvala no moralista, e cai no ledo engodo de idealizar a infância sob os olhos de um burro velho. No entanto, deixo o texto por aí pois creio que a leitura realizada nele não é de todo vulgar. Também, não é para tanto: a um céu enigmático e melancólico, qualquer olhar lançado se depara com alguma de suas incontáveis constelações.

domingo, 11 de março de 2012

Solaris como horizonte da fé no conhecimento


         Os leitores de Borges devem se lembrar da aventura do legionário romano Flamínio Rufo, que, na busca da lendária Cidade dos Imortais, acaba por encontrar outra cidade póstuma, construída, com o crivo de Homero, sob o signo da loucura, cuja vertigem apavora o militar. Borges nos diz: “consta que, depois de cantar a guerra de Ílion, [Homero] cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criasse o cosmos e depois o caos” [19]. Muda-se radicalmente o cenário literário, o homem moderno lança-se contra as estrelas em busca do desconhecido, mas a sua estupefação permanece intacta. Pois, da mesma maneira, a descoberta do planeta Solaris, contada retrospectivamente pelo narrador de Stanislaw Lem, perfaz o movimento de encanto e embriaguez. Os cientistas do planeta dominado por um oceano plasmático sentem-se pisando em terreno virgem para o conhecimento, com a esperança de que a investigação daqueles fenômenos planetários peculiares pudesse avançar as fronteiras da percepção humana sobre o universo. Ledo engano. O planeta se revela, pouco a pouco, um mistério inextrincável, e, entre tantos caminhos para seguir ou não seguir, algumas veredas tortas da ciência apelam para soluções metafísicas. “Solaris era como uma espécie de ‘iogue cósmico’, um sábio, uma exemplificação da onisciência que, havia muito tempo, compreendera como era vã toda atividade e que, por essa razão, a partir daí se recolhia num silêncio inabalável” [Lem: 36].

Solaris, por Andrei Tarkovski

O que está em jogo é a possibilidade de conhecimento progressivo e totalizante de um universo que salta ao horizonte do ser humano com cores sempre novas. Toda ciência postula um objeto a ser conhecido, e tal perspectiva objetiva é essencial à própria ciência. Existe a caixa-preta da razão e existe o que está fora dela, e o que está fora dela pode ser conhecido como objeto, e isso todos nós sabemos. Mas a ânsia de se estabelecer relações entre os diversos objetos sempre comporta um certo nível de operações indevidas, que fazem o sujeito projetar-se naqueles objetos que ele investiga. Até ao ponto de surgir o problema de em que medida o conhecimento é deveras objetivo, problema esse que rasura a base da teleologia científica. Em face de tal problema poderíamos, com Nietzsche, simplesmente fazer o elogio de “todo o Olimpo da aparência”. Mas, ao invés disso, continuamos a fazer ciência, estudamos a estrutura do átomo, exploramos astros universo afora e, sobretudo, nos trancamos em bibliotecas.

E é de dentro de uma biblioteca que Kelvin, o narrador e protagonista de Solaris, contempla a vastidão e a incongruência do conhecimento científico que, como pano de fundo dessa outra vastidão e incongruência que é o planeta Solaris, parece apontar para a inutilidade de toda atividade, clamando ironicamente pelo silêncio eterno. O espaço da biblioteca inverte o vetor do conhecimento, os livros deixam de ser um mapa para o mundo, e o mundo é que passa a ser um mapa para os livros. “Num clima de indiferença geral, de estagnação e desânimo, o oceano de Solaris ficou coberto de outro oceano de papel impresso” [Lem: 223]. Os fenômenos de Solaris desafiam classificações unificantes, cada manifestação do oceano revela novo acaso, e qualquer tentativa de explicação logo é substituída por outra mais ou menos insana. O conhecimento solarístico não estabelece nenhuma espécie de progresso, pois caminha como num labirinto que a cada esquina se bifurca em caminhos imprevistos. O narrador nos diz: “O conjunto de nossos conhecimentos exatos [de Solaris] era estritamente negativo” [34]. Ou seja, apenas se pode saber o que o planeta não é, não é isso nem aquilo, e assim sucessivamente. Se investigarmos mais a fundo Solaris, saberemos que, a despeito do que dizem apressadamente alguns livros, o planeta não é um “iogue cósmico”, nem um Deus, nem a construção caótica de algum ser imortal. Na esteira provalmente infinita das negativas o ser humano poderia vislumbrar, afinal, o totalmente outro, aquilo que o excede e que permanece indefinidamente um mistério. Existe um mundo lá fora, e esse mundo é a própria negação do espaço aconchegante e confortável da biblioteca, em seu autrocentrismo contemplativo e especulativo. Supostamente, o homem pode escolher entre se interessar pelo mundo e se desinteressar pela biblioteca, ou se interessar pela biblioteca e se desinteressar pelo mundo. Ou fazer as duas coisas sucessiva e ciclicamente, num processo dialético interminável, em torno do qual a verdade apenas lance algumas sombras parciais, prometendo sempre se revelar mas adiando indefinidamente sua realização.

         Por fim, Kelvin reconhece que o problema Solaris excede infinitamente sua medida humana. E no entanto, até onde ele consegue compreender, a medida humana também excede continuamente a si mesma, criando a ilusão de progresso que está na base da ciência. Afinal, não deixa de ser também um prodígio que aquele frágil bicho de terra, em demanda de uma necessidade incógnita, tenha construído suas maquinarias e se atirado contra as estrelas, e nesse meio do caminho encontrara algo tão incrível como Solaris. Porém, a ironia da ansiedade humana é que o planeta não se cansa de desafiar os cientistas escondendo seus mistérios, e, por sua vez, os cientistas buscam outras soluções. A dinâmica do conhecimento perfaz a dinâmica da vida e da morte, e essa dialética é também a própria natureza humana, por mais antinatural que ela pareça. É somente por saber que um dia vai morrer que o homem busca estabelecer uma ordem, busca deixar a marca de sua presença, aquém e além de planetas como Solaris. Como bem nos lembra Borges, caso não fosse assim, só restaria ao imortal construir uma obra final para simbolizar o caos e viver na pura especulação e na inanição. “A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho” [Borges: 21]. É no reconhecimento da dissipação que se vive uma vida humana, espreitando a morte a cada ato que executa. Solaris, por ser um mistério inacessível à consciência do ser humano, dá a medida da raridade e da precariedade inerentes à vida.

Solaris, por Steven Soderbergh

Contemplar Solaris e saber que essa “coisa” existe pode ser como contemplar a póstuma Cidade dos Imortais, cuja grandeza nos aterroriza e nos enlouquece. Mas também pode ser o vislumbre do totalmente outro, onde subjaz a natureza humana, porque dele viemos à vida e para ele retornaremos na morte. E nesse vislumbre, continuar a lida humana por dar uma forma ao mundo, na pura ilusão de imortalizarmo-nos naquilo que fazemos. Como diz Kelvin no final de Solaris: “persistir tendo fé em o tempo dos milagres ainda não haver cessado” [269]. Mesmo que o mistério permaneça indefinidamente mistério para todos nós.


.BORGES, Jorge Luis. “O imortal”. In: O Aleph. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
.LEM, Stanislaw. Solaris. Tradução de José Sanz. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sombras de um Japão imaginário



          Em Cosmo Canyon repousa indefinidamente o espectro de remotas memórias, que insistem em confundir os sonhos com as representações daquilo que ainda chamamos realidade. Nesta pequena cidade construída por um povo agora
Cosmo Canyon, de MeanPete
extinto, com suas casas de madeira empilhadas numa encosta de montanha,
sobrevive um planetário, e a sabedoria acumulada por séculos de meditação e de observação dos astros. Não há melhor lugar para aprender a sopesar os valores humanos, contra o vasto céu noturno de eternidade e esquecimento. Se tivesse de realizar uma viagem para outros lugares e cidades, seria de lá que partiria, após assentar serenamente meus afetos neste mundo há muito tempo abandonado por mim.


            Seguindo diretamente ao norte, se encontra Nibelheim, cidade onde alguns de meus amigos nasceram, e mais ao norte Rocket Town, onde vi pela primeira vez uma plataforma de lançamento de foguetes. No entanto, partindo de Cosmo Canyon, eu seguiria caminho contrário, e contornaria a cordilheira que separa as duas partes do continente. Mais ao norte há North Corel, cidade em ruínas de onde parte um teleférico para Gold Saucer, o parque de diversões mais fantástico que conheci. Não posso deixar de admitir que Gold Saucer é um lugar extremamente interessante, de um apelo sinestésico que me obriga a querer percorrer todas as suas atrações. Mas alguma coisa nesse lugar me faz lembrar o onipresente capitalismo encarnado pela empresa Shinra, cuja falta de escrúpulos fez questão de alongar seu império pelos quatro cantos deste mundo.


            Portanto, em minha viagem eu trocaria Gold Saucer por North Corel, a cidade ruinosa, e lá pararia para talvez conversar com algumas pessoas que ali restassem. Muito antigamente, a cidade sobrevivia de atividades autônomas e da exploração dos minerais abundantes em suas redondezas. Recordo que foi nessa cidade em que crescera um de meus amigos, que aqui ocupava uma determinada posição de liderança. Ele foi responsável por negociar acordos que trouxeram as tecnologias de Shinra para cá, com a promessa conveniente de prosperidade e progresso. Em certo momento da implantação tecnológica os reatores explodiram, arrasando a cidade tanto quanto sua antiga economia. Muitas famílias morreram, inclusive a de meu amigo, e a empresa Shinra quis calar as reivindicações daqueles que tanto perderam. Meu amigo nada pôde fazer, foi execrado e expulso do que sobrou da cidade, e passou a alimentar um ódio declarado por Shinra.


            Obviamente, ele não mora mais aqui, mas alguma coisa na ruína da cidade talvez me atraia. Não só pelo drama que nela repousa, nem pela ideologia que nesse drama se encerra, mas pela autenticidade que essa pequena história encena. North Corel é um pequeno símbolo de muitas coisas que ocorrem por esse mundo (e também em outros mundos), e não quero esquecê-lo antes de partir para outros lugares. Pegando um trem que atravessa as montanhas que cercam a cidade, chegaria à região mais a nordeste do continente, onde encontraria a pequena Costa Del Sol. Lugar de turismo preferido entre executivos de Shinra, é também um porto de onde parte navios para o continente oriental. Num desses navios chegaria a Junon, e lá talvez eu perderia um pouco de meu tempo.

Junon, de _Rodrix_


            Junon é a segunda maior metrópole, e a mais militarizada, também construída pelo protagonismo da empresa Shinra. Aqui se realiza a maioria dos projetos de alta tecnologia, como o do gigante canhão Sister Ray, o dos submarinos exploradores das profundezas do oceano, e da nave Highwind. Junon é um centro de poder bastante influente onde desfilam figuras importantes, em que boa parte do povo é descaradamente manipulada por um controle de informação, mas onde também existe uma vida subterrânea bastante ativa. Nos bares discretos e casas noturnas da cidade é possível saber muitas coisas dos bastidores de Shinra, e na minha viagem eu gastaria algum tempo coletando algumas informações e histórias.


            Saindo de Junon, eu teria de seguir um pouco mais ao sul do continente, passando por Fort Condor, uma cidade também bastante militarizada, mas que consegue manter certa autonomia em relação a Shinra. Seguindo a leste, é possível atravessar a cordilheira de montanhas que separa o continente, passando pela pequena Chocobo’s Farm, e então seguir ao norte, contornando o outro lado das montanhas, passando por Kalm Town, e chegando à portentosa Midgar. Na minha viagem esse talvez seria o ponto de chegada, que por sua vez significaria um outro ponto de partida. Porque Midgar é não somente a maior metrópole desse mundo imaginário, mas também o lugar para onde todas as estradas, todas as pessoas, e todos os conflitos vão dar (talvez como na antiga Roma).
Midgar, de Vehementscythe1337


            Vista de fora e do alto, a arquitetura de Midgar se assemelha a uma grande pizza, seccionada em oito grandes fatias. Na borda de cada um desses cortes há um enorme reator de energia Mako, cuja manipulação é o grande trunfo de Shinra, que encontrou uma forma de literalmente sugar a energia do planeta. No centro do gigante círculo se eleva o imponente prédio que sedia a empresa Shinra, de onde emana boa parte de seu poder administrativo e executivo. A população vive em um dos oito setores do grande círculo, debaixo de uma gigante marquise que protege a cidade e cria para ela um clima todo artificial. A cidade é atravessada pelos contrastes entre a riqueza e a pobreza, com grandes prédios dominando a paisagem, e bairros carentes que formam verdadeiros guetos. Da mesma forma que em Junon, o controle de informação é ostensivo, mas nunca o bastante para apagar a evidência da miséria cotidiana. Aqui nasceram, cresceram e viveram muitos amigos e muitos não amigos, dos quais me perdi com o tempo e com os quais me encontro eventualmente; aqui o drama perene do homem que oprime o próprio homem ganha as cores mais intensas e indisfarçáveis, mesmo que sejam cores de um mundo virtual; aqui a minha jornada se encerra, e daqui partem novos sonhos e novas confusões entre minha fraca e imatura memória e aquilo que ainda insistimos em chamar pelo nome de realidade.


            Mas afinal, qual a relação entre o relato de viagem acima esboçado e o Japão, que em nenhum momento é ali referido ou sugerido? Devo dizer, a bem da verdade, que a relação é quase nenhuma, a não ser pelo fato de que foram alguns japoneses que criaram aquele mundo virtual e imaginário no qual minha viagem se deu. Do Japão real conheço quase nada, e provavelmente não conhecerei muito mais ao longo da incerta vida que ainda me resta. Poderia fazer uma pequena pesquisa sobre lugares que eventualmente interessariam à minha condição de turista por paragens japonesas, mas questiono o valor de um tal esforço. Pois se o Japão real se encontra realmente num outro canto remoto do planeta, do qual apenas recebo notícias e representações diversas e alheias, por que eu ainda insisto em dizer que ele é real para mim? Obviamente que não é, e o meu esforço de realização do “meu” Japão consistira em escolher devidamente as imagens que me chegam do Japão e adequá-las ao que se espera que seja o Japão dos “outros”, ou seja, o Japão real. Mas minha preguiça não permite isso, e talvez eu mereça ser repreendido pela professora que me propôs a me ensinar um pouco da cultura japonesa real nesse semestre.


            No entanto, se ela tiver ainda a paciência de continuar me lendo, devo dizer que o Japão que me interessa não é exatamente o daquele outro canto do mundo estranho e remoto para um brasileiro anônimo como eu, mas é o do contraste entre esse mundo e o das representações afetivas que eu fazia dele, ao passar parte considerável de minha infância atrás de uma tela. É bastante conhecida a diatribe agendada por Platão em sua República, em que surge a metáfora da caverna de onde os filósofos pretendem sair. Nessa metáfora, os poetas (e por extensão todos aqueles que lidam com a criação) mereciam o privilégio de serem expulsos da imaginária república do filósofo grego, justamente porque são eles que contribuem para aumentar a quantidade de sombras que nos obscurecem o conhecimento da verdade e o acesso daquilo que ele pretende ser a realidade. Mas o mais irônico dessa brincadeira toda é que para dizer isso Platão recorre a uma metáfora, a uma imagem, ou seja, mais uma das sombras que ele mesmo condena, e com isso ele contribui para transformar a caverna num lugar mais confuso e menos “real”. Mas se ele não se condena a si próprio ao degredo da república imaginária que ele criou, então não vejo porque eu mereceria ser expulso, nem os japoneses que criaram o mundo no qual eu pretendi viajar.



            Portanto, se me for dada a chance de conhecer um pouco mais do Japão real, antes disso eu gostaria de realizar mais uma vez o mergulho nesse mundo de sombras que eu narrei, cuja relação com o Japão está muito longe de ser evidente. Porém, se não é evidente, por outro lado ninguém pode dizer que é menos real, por mais risível que pareça minha ingenuidade. Posso não saber o que é o Japão e nem o que faria se tivesse de ir para lá, mas ao menos sei muito bem me localizar em Midgar. E enquanto não encontro (nem pretendo encontrar) utilidade para esse conhecimento, vou repousando pouco a pouco em sonhos de realidade, cuja quimera, se não me matar de vez, talvez me deixe um pouco mais forte com o tempo. O Oriente não é um referente geográfico, senão um referente imaginário.


Nota: Escrevi esse texto como trabalho final para a disciplina eletiva Sociedade e Geografia Japonesa, ministrada pela querida professora Elisa Sasaki. A proposta dela foi a seguinte: escrever um texto que funcionasse como uma espécie de roteiro para uma hipotética viagem ao Japão. Em verdade, não consegui pensar em nada sobre o que escrever dentro dessa proposta, e, na véspera da entrega do trabalho, já nas raias do desespero, tive o impulso irreverente de narrar um roteiro de viagem pelo mundo de Final Fantasy VII. Acabou que deu certo: tirei 9,5 pelo trabalho, a melhor nota entre a turma, e arranquei alguns elogios bem irônicos da professora. Acho que, às vezes, é preciso certo jogo de cintura para transformar o cinismo numa forma de honestidade. Pessoa vive nos ensinando que o poeta é um fingidor que finge a dor que deveras sente para dizê-la mais verdadeiramente. Guardo com muito carinho a lembrança simpática de Elisa, e do sushi que ela preparou para nós no último dia de aula. O único problema é que eu sou mesmo um brasileiro da gema. Bem, nem tanto assim...

sábado, 11 de fevereiro de 2012

O último olhar de Argos



“Argos recebeu o que lhe cabia, o pretume da morte.
Ao menos reviu Odisseu, depois de vinte anos.”
Odisseia, Canto 17, 325-326: tradução de Donaldo Schüler

Para designar a nobreza de alguns atos e comportamentos animais, ainda não inventaram nome justo. “Fidelidade”, “abnegação”, “amizade”, todos são nomes humanos, demasiado humanos para caberem naquilo que não entendemos. Talvez por trás do universo constelado de sonhos daqueles que vivem ao lado de homens sem trocarem uma só palavra, num silêncio interminável, grasse unicamente a moeda do interesse mediando todas as relações, sem a mínima exceção. Para mim, nenhum problema, creio no seguinte: a espécie é interessada; o indivíduo é ingênuo.

Aquilo que chamamos hoje pelo nome de “cachorro”, um dia foi alguma coisa selvagem, não admitida no convívio humano, andando em grupos, cercando restos humanos, e fugindo quando era dia do caçador. Filhotes órfãos mereceram a misericórdia dos “civilizados” e, trazidos para dentro de casa, ali levaram para adiante a preservação de sua espécie. Como todos os animais domésticos, sua história começa com a violência, com a captura da natureza, com o convívio forçado entre dessemelhantes. Seria sim muita ingenuidade crer que o animal doméstico não tenha nenhum interesse em se utilizar do trabalho humano, se ele próprio vive subjugado por expedientes estranhos à sua origem. Afinal, ele precisa sobreviver de alguma forma nesse mundo do trabalho, alheio a sua essência expropriada, como um estrangeiro procurando função numa terra que não é a dele. Conhecemos gerações e gerações de cachorros que foram úteis para a comunidade humana, como caçadores, farejadores, guardiões, cortesãos etc. Mas a história das espécies, muito aquém de qualquer teleologia, nunca se preocupa com o bem-estar dos indivíduos singulares. Para se adaptar a cada nova função, demanda-se toneladas e quilolitros de sofrimentos. E quando não mais resta qualquer utilidade para o animal domesticado, nem o interesse próprio o salvará da extinção. A dança das espécies faz o seu trabalho de verdugo, abrindo passagem no meio da economia destrutiva da vida. Pois então, ninguém viu o cachorro chorar pelo seu próprio fim iminente. Ele não tem lágrimas, ele não tem palavras. E provavelmente, não deve saber que o seu destino é finar.

Amor de cachorro talvez seja o reconhecimento pela tolerância humana. A condição de estrangeiro a buscar função numa terra estranha pressupõe nada menos que a humildade. Cachorro sabe que ele é mero objeto na mão de homens, que podem dispor-se dele para fazerem quase tudo. Podem vendê-lo, podem torturá-lo, podem abandoná-lo, e também podem amá-lo. Cachorro sabe que o amor de homem nunca é exatamente uma troca. Se parece mais com a operação de investimento: sujeita às variações do mercado, podendo nunca dar lucro, muitas vezes até resultando prejuízo. E no entanto, o cachorro não tem sindicato que o defenda, cachorro não tem consciência de classe, não faz greve. No jogo do amor, ele simplesmente não tem nada a perder, e por isso quase sempre aposta tudo. Tamanha fragilidade às vezes faz esquecer que a imagem do animal sempre foi a de um corpo estranho na comunidade, subtraído da natureza para integrar à civilização na condição de servo, de escravo, ou na condição de mendigo, de vagabundo. Mesmo quando a imagem do animal desponta com selvagerias, trata-se de problemas domésticos, de coisas que fugiram ao controle, coisas ainda não “humanizadas”. O esforço de humanização dos animais é o ato ancestral e civilizatório de dobrar instintos para fins humanos. Não é fazer o homem ir de encontro ao animal, mas o contrário, fazê-lo vir ao homem. O cachorro, desde que nasce entre homens, sabe que vive sob o jugo da dominação. Na sua escala de valores, se existe algo parecido com isso, a liberdade deve brilhar com cores muito mais modestas. O cão humanizado é uma paródia de animal, pois não é homem nem é animal. Pode até ser engraçado e bonitinho pra quem vê de fora, mas de dentro sua condição é triste.



Odisseu, ao voltar a Ítaca depois de vinte anos de ausência, disfarçado de mendigo para não causar alarde, está numa posição marginal em relação à sociedade na qual ele é rei por direito. Nessa situação, ele não encena mais o guerreiro, o conquistador, o líder que ele encarnava até chegar ali. Odisseu disfarçado e submisso é o símbolo do olhar deslocado, capaz de observar melhor a condição dos outros seres devido à sua fragilidade inerente. Desde que o homem é homem, civilização também abriga o momento da reflexão, também é o esforço, mesmo que minoritário, mesmo que a posteriori, de ir de encontro àquilo que nos é alheio. E no palco das identidades humanas, em que o que vale é a distinção das aparências, Odisseu aparece como agente duplo, por um lado desprezado por quase todos, por outro lado atilado para o julgamento. Ninguém é capaz de saber que por trás daqueles andrajos se esconde a figura imponente de um rei. Todos tem olhos apenas para o visível, e nesse reino impera geralmente o disfarce e a mentira. Apenas uma criatura, entre tantas, identifica o Odisseu imutável, sem precisar de provas, sem ouvir a narrativa da origem, da linhagem, das desventuras, sem pedir outras credenciais que não a mais imediata presença. Argos reconhece Odisseu tão logo ele aporta em seu palácio, e em vista do retorno do dono, impossibilitado de mover-se na velhice, balança o rabo, abana as orelhas, e morre.

Para além da memória intocada e do olfato privilegiado, Argos se diferencia de todos os outros itacences na necessidade do retorno de Odisseu. Argos não precisa de que Odisseu retorne para restaurar o estado de coisas anterior à ausência do herói, para dar um rumo à situação suspensa quanto ao casamento de Penélope, para botar ordem nos pretendentes que infestam a casa do sumido rei, para nada disso. Argos precisa de que Odisseu retorne para conformar a sua condição de cachorro, Argos precisa de Odisseu para morrer. Ao vê-lo inane largado no esterco, Odisseu, sensível para compreender a condição daqueles que, como ele naquele momento, circulam na margem da aceitação, chora, e esconde o choro para não ser desmascarado. Argos sem Odisseu era como todos os outros cães sem função que vivem no seio da comunidade humana, sujeitos aos desmandos da orfandade, do abandono, da solidão, da indigência. Argos sem Odisseu é símbolo do indivíduo sujeito à sua própria ingenuidade, cuja história desafortunada da espécie já não o dota de outros meios para lutar em seu interesse. O último olhar de Argos é o olhar do reconhecimento de que ao menos a função de cachorro retornou para ele, ao menos a função de apêndice do homem. Argos ama Odisseu dessa maneira, e com esse reconhecimento ele pode morrer...


Por não estarmos geralmente como o Odisseu trajado de mendigo, para nós é bastante difícil compreender o sentimento canino. E então, domesticamos até o nome desse sentimento, e dizemos :“fidelidade”, “abnegação”, “amizade”. Mas para ser um pouco mais exato, ainda não existem palavras adequadas. Se a história de nossa espécie se baseia sobremaneira na dominação, inclusive na dominação de outras espécies, parte dessa história está inseparada da reflexão sobre os efeitos do poder. Em toda escala de relações humanas, a justiça pede espaço para entrar, principalmente no âmbito doméstico. Se o ser humano não é capaz de reconhecer a alteridade animal, então também não é capaz de respeitar a própria espécie em sua diversidade. A luta ética se faz em todas as frentes, em todos os instantes. Sem isso, não temos razão para orgulho em sermos chamados “animais políticos”. Sem isso, somos APENAS animais, e do tipo mais violento, predador.

Assim espero que, se é inevitável que Argos sobreviva abrigado em nossa Ítaca, que ele possa ao menos reconhecer Odisseu, num último olhar, anterior à morte. Nunca saberemos o que esse olhar significa, e no entanto ele nos diz respeito tanto quanto todas as ilhas para além do Mar Oceano.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A dignidade da loucura de Dom Quixote



Recordo algumas palavras de meu professor Marcus Motta, meses atrás, durante aula na UERJ. O Quixote é o único, em meio à sua loucura, capaz de conceder dignidade a seus interlocutores. Quando encontra duas prostitutas numa estalagem, que ele toma por castelo, chama-as de “senhoritas”, contra todas aparências e preconceitos esperados. Obviamente, nós sabemos que o herói está delirando, pois até as “senhoritas” escarnecem seu procedimento respeitoso. Elas próprias, experimentadas na vida, já assumiram a imagem com que o mundo continuamente as condena, e alguém que, como o Quixote, as vê diversas dessa imagem corrente, deve ser nada menos que um maluco. No entanto, independente das razões e não-razões que o Quixote tenha para ver as coisas sob suas lentes divergentes, ele é o único a dar às prostitutas uma chance de fugir dos rótulos que as esmagam, uma chance de serem consideradas “nobres”, antes humanas do que mera escória social. Essa chance, que vista apenas pelo lado do equívoco nada mais produz do que o efeito cômico da situação, vista pelo lado não essencialista das identidades humanas cria a possibilidade de uma relação digna entre criaturas tão diferentes.

O Quixote é o único que, no meio da sua loucura, suspende o mundo empírico das relações humanas para instaurar um “outro mundo”, o mundo quixotesco onde o que impera são as normas e valores da cavalaria, anacrônicos à realidade em que o herói circula a agir como se cavaleiro fosse. E como todos nós sabemos, nessa suspensão, há um grande risco de, ao invés de produzir dignidade no trato com as pessoas, gerar por outro lado uma série de conflitos, como de fato muitos acontecem no romance. Porém, mesmo nesses conflitos em que o Quixote esbarra nas suas aventuras, vemos o quanto ele está seguindo, antes de mais nada, a fidelidade inquebrantável a valores humanos, com que ele quer fazer dobrar as relações correntes, antes que a realidade dessas relações o dobrem. Para o Quixote, um senhor fustigando seu servo numa beira de estrada, a despeito das razões que o senhor possa ter, não é nada mais do que a imagem da injustiça, sobre a qual o cavaleiro deve intervir. Para ele, criminosos condenados pelo próprio rei a duros trabalhos durante anos numa galé, acorrentados a caminho de sua pena, merecem uma chance de se redimirem, porque o único juiz infalível é somente Deus, para além do rei. Para o Quixote, a honra de uma senhora renomada deve ser defendida, se necessário à base da porrada, contra quem ouse dela divergir, mesmo que essa senhora exista apenas na imaginação do herói, não passando de um personagem de romance de cavalaria. Como vemos, a loucura do Quixote não pode ser considerada de jeito nenhum uma “loucura mansa”, e no entanto é uma loucura sobre a qual ninguém poderia dizer que é incoerente, visto basear-se numa solidez dignificada. O Quixote não quer apenas consertar o mundo, ele quer também concertá-lo, partindo de um princípio que organize suas ações. Se podemos dizer que o Quixote escolheu errado seus princípios, por outro lado DEVEMOS reconhecer que o mundo nunca será mais que um “eterno desconcerto”, nas palavras de nosso querido Camões.

Portanto, o Quixote é o único que, diante do eterno desconcerto do mundo, se recusa a assumir o permanente cinismo de todas as outras pessoas, que se defendem na superfície das aparências identitárias para justificarem suas atitudes por vezes perversas e desumanas. O Quixote assume a irrealidade de seu mundo quixotesco como meio para se insinuar ao mundo real, mostrando para este o quanto ele parece imperfeito diante da dignidade do herói, aquém de seus sonhos, aquém de suas utopias, aquém da mera possibilidade de justiça. Para que a realidade não se desestabilize diante da presença impertinente do cavaleiro andante “da Triste Figura”, ela precisa dizer a todo tempo que aquele que diverge de sua norma não passa de um maluco. Mas do ponto de vista do Quixote, no meio da sua solidão absoluta, o difícil mesmo não é combater moinhos de vento, o difícil é provar que a loucura está em quem conforma-se plenamente com esse eterno desconcerto do mundo.

Quixote, por Gustave Doré

No meio da sua loucura, o Quixote é o único que se recusa a assumir as aparências correntes no mundo preconcebido por outros. Mesmo quando seus olhos veem apenas o que veem, ele entende o desconcerto como encantamento com que um gênio maligno vive a perseguí-lo. Definitivamente, não conheço qualquer outra dignidade mais elevada do que essa do Quixote, a dignidade da loucura. É preciso conceder a chance de que as prostitutas sejam mais do que parecem, sejam “senhoritas”. Mesmo que a realidade venha continuamente a nos desmentir, é preciso vê-las antes como “senhoritas”. Talvez o único ato de sanidade diante de um mundo que se enlouqueceu.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Correio de Midgar nº 1



Onde o ruído da metrópole ainda respira lembranças de Gaia

           Para uma certa religião de um mundo distante, o Planeta é como um ser vivo, de onde provêm e para onde retornarão todas as formas vivas, após esse interstício que é a experiência terrena. A heterogeneidade das formas apenas esconde sua unicidade atômica. A relação do macro com o microcósmico reflete a vinculação dos homens com natureza que os rodeia, e sua cultura é nada mais que uma expressão espiritual de um elo com a terra, também chamada de Gaia. Para os humanos conscientes de seus vínculos telúricos, o que lhes resta é, impelidos para o nomadismo, a busca simbólica e efetiva de uma Terra Prometida, em que se realizaria o encontro místico com Gaia. No entanto, na atualidade desse mundo, tal religião já perdeu o seu significado, posta de lado pela tendência ao sedentarismo e pela agitação da vida moderna das novas gerações. Essas que, na medida em que vão se organizando e evoluindo social e materialmente, se baseiam numa cultura que caminha para a autodestruição, de si e do planeta, e para a selvageria tecnológica.

           Séculos passaram, e a vida atual no Planeta é regida pela atividade monopolística de uma grande corporação, que trabalha na exploração dos recursos naturais da terra e os vende para a massa cada vez mais miserável que se agrupa em torno de metrópoles cyberpunks. Na maior dessas metrópoles, Midgar, uma história de heróis se esconde no underground. O líder de um grupo eco-revolucionário prepara um assalto para explodir uma usina de energia Mako, coração funcional da cidade. Após um voo panorâmico por Midgar, a câmera desce para revelar um trem que se aproxima do distrito industrial, no qual estão infiltrados os terroristas com os quais o jogador terá de se identificar no início dessa história.

          É a partir desse núcleo ativo de personagens que o universo de Final Fantasy VII se desenvolve, integrando outros personagens em outros contextos e expandido horizontes, ganhando aos poucos uma dimensão holística que vai para muito além de Midgar e envolve o destino do próprio Planeta, comprometendo nele a totalidade de suas criaturas, dimensão que abarca a própria ideia de Gaia.


Mundos ficcionais

           Final Fantasy VII debutou no PlayStation em 1997, e sua “novidade” estava em criar um clima convincentemente cinematográfico sobre a base dos já clássicos RPGs eletrônicos, envolvendo o jogador numa experiência narrativa que marcaria para sempre a popularidade do nome Final Fantasy. O RPG eletrônico nasce como uma tentativa de emular nos computadores e consoles a experiência de aventura típica dos RPGs de mesa. No início a coisa era mesmo muito rudimentar. A jogatina se limitava a assumir o controle de um avatar digital, que percorria dungeons com o intuito de caçar monstros, coletar itens, explorar labirintos, evoluir seus atributos etc. Uma evolução decisiva é introduzida com a apropriação japonesa desse tipo de jogo. Já em 1986 nasce o game Dragon Quest, responsável por popularizar bastante o gênero entre os japoneses. No ano seguinte, Final Fantasy é lançado, um produto aparentemente mais bem acabado que seu predecessor, responsável por salvar a Squaresoft da bancarrota e iniciar uma série de games de sucesso. A partir daí, o role playing videogame passa a ser massivamente um produto sinônimo de criação japonesa, filtrado pela visão de mundo peculiar dos orientais.

          Na verdade, há tradicionalmente uma cisão entre duas concepções de RPGs para videogames, que se convencionou dividir entre ocidentais e orientais. Os RPGs ocidentais costumam investir mais na mecânica, com designs em que há um maior desenvolvimento de habilidades e equipamentos, e aventuras com maior liberdade de escolha e possibilidades, às vezes até narrativas não-lineares, com múltiplos finais. Os RPGs orientais, em contraponto, investem muito mais na ambientação, no design de personagens e dos cenários, criando uma trama que, ainda que seja quase invariavelmente linear, carrega uma maior dramaticidade, retocando os heróis e adversários com traços mais propriamente vivos e humanos. Os RPGs japoneses, sobretudo os da saga Final Fantasy, são reconhecidos por apresentarem uma narrativa empolgante, que persuade o jogador a se interessar afetivamente por aquele mundo virtual e querer descobrir o seu desfecho e destino. 

          Um produto como Final Fantasy é algo parecido a uma colcha de retalhos, um mosaico pouco convencional de colagens advindas de várias influências da cultura pop circulante no país que o produz, além de ser um triunfo no domínio de técnicas de informática e computação e de arte visual digital. De todo modo, a Squaresoft, empresa originalmente desenvolvedora da saga Final Fantasy, conquistou ao longo dos anos a autoridade de possuir uma marca singular, um estilo, uma identidade própria, não presente em nenhum outro produto semelhante. A era de ouro da Squaresoft acompanhou o contínuo refinamento e amadurecimento da série Final Fantasy, processo que culminou nas duas trilogias principais: os títulos IV, V e VI (para o SNES), e VII, VIII e IX (para o PlayStation).
 


          Na época de seu lançamento, o frenesi em torno de Final Fantasy VII não foi casual. Alguma coisa muito especial foi alcançada ali. O game demonstrava que era possível criar nos videogames uma experiência imersiva que rivalizava com o cinema em termos de narrativa, ambientação, complexidade, beleza visual, e mesmo em sua ambição um tanto megalomaníaca. Certamente que essa obra contém a marca de seu tempo, e seu apelo não pode ser justificado sem um certo encanto pelo nome e pela proposta. Porém, o desafio estava lançado: Final Fantasy VII se tornou então o maior exemplo do grande potencial que havia nos games no sentido de arquitetar um mundo ficcional autônomo e explorar uma história para ele, mundo esse que atendia a seu modo ao já milenar critério crítico de verossimilhança. O hype da época elogiava o aspecto cinematográfico de Final Fantasy VII, mas minha opinião, que apenas se esclareceu para mim ao longo dos anos, é que o apelo que esse tipo de game ainda pode exercer hoje consiste mais em sua atmosfera romanesca. Os RPGs da tradição japonesa, em sua evolução naquilo que realizam como narrativa, seriam talvez melhor compreendidos em seu parentesco, aparentemente mais distante, com a literatura.


A biblioteca virtual

           Talvez não seja exatamente necessário dizer que a inspiração visual para o blog venha de Final Fantasy VII. Quem conhece, mesmo que vagamente, a saga Final Fantasy, sabe que Midgar é a cidade gigantesca, futurista e decadente onde se iniciam os eventos do sétimo jogo da série. Mas talvez a inspiração seja também de outro nível, e eu só possa referi-la entrando em detalhes pessoais. Durante toda a minha infância, minha cultura e paixão consistia basicamente nos videogames. Meus pais tiveram uma locadora no interior de São Paulo, Pindamonhangaba, nos meados dos anos 90. Foi lá que tive acesso a uma parte considerável do acervo de jogos disponíveis para o Super Nintendo e PlayStation. Em algum momento de 1998, meu pai apareceu na locadora com os três CDs da versão americana de Final Fantasy VII, convencido da qualidade técnica do game, tão retumbada unanimemente pelas revistas da época. Eu nunca tinha visto a coisa ao vivo, tampouco jogado algum game da série. Obviamente, a nova aquisição de meu pai não fez sucesso na locadora; apesar da linda abertura, as pessoas não entendiam o conceito, não tinham paciência para as situações de diálogo, achavam a ação muito monótona, não conseguiam ou não queriam avançar a parte inicial, julgavam um tanto ridículos os gráficos dos personagens in-game, etc. Os RPGs não são afinal para se jogar com pouco tempo, não são imediatamente acessíveis. Mas como eu tinha acesso, tempo e paciência para a coisa, era o jogador ideal de Final Fantasy VII.

          Também tinha uma certa predileção por histórias de aventuras, sem ter nenhuma perseverança em leituras que não fossem de revistas de videogames. Livros foram objetos que definitivamente não fizeram parte de minha infância; li penosamente apenas uma meia dúzia deles até os meus quinze anos. Ao mesmo tempo, tinha grande vontade de criar histórias, e não era de todo desajeitado com a escrita, pelo menos em comparação com a média dos colegas de escola. Fato é que, por todo esse conjunto de variáveis improváveis, Final Fantasy VII se tornou um universo para mim. E depois os outros jogos da série, e depois uma boa parte dos outros RPGs da época. Eu entendia intuitivamente que era o tipo de jogo que se afinava melhor com minha imaginação de garoto tímido, sonhador e um tanto caipira.

          Há algo que todos que cresceram jogando videogames podem atestar e que facilmente é confundido por uma certa tendência à nostalgia. A experiência com os videogames tem um poder especial, não igualado por nenhuma outra mídia, de se colar à memória de uma maneira mais radical e formante; de modo que, com uma frequência às vezes aterradora, as memórias de locações virtuais se confundem com memórias de locações reais, e as memórias de umas e outras se interpenetram e se implicam, se provocam e se referem, como se todas fizessem parte de um mesmo passado comum, vivido como se fossem experiências de um mesmo nível e natureza. Isso é mais verdade para a experiência com jogos como Final Fantasy VII, que pedem a dedicação de algumas dezenas de horas para se familiarizar com seu mundo, suas regras, seus desenvolvimentos, sua totalidade autônoma e particularmente coesa.
 
Midgar

          Certamente, a experiência infantil com RPGs eletrônicos cumpriu um papel fundamental na minha futura conversão à literatura. Midgar se tornou para mim uma cidade tão viva quanto outras locações que, meramente pelo fato de serem consideradas “reais”, merecem o status de serem chamadas de “vivas”. Certamente que há um flagrante quixotismo nesse meu modo de falar dessas coisas, mas ao longo dos anos também deixei de me importar com o juízo geral sobre a coisa. Algumas minudências nos definem muito mais do que os grandes fatos da vida que em geral apresentamos como credenciais. Existe uma série de outras entidades meramente imaginárias que as pessoas consideram reais apenas pelo fato de existirem palavras na língua para elas, e no entanto a “realidade” dessas coisas não é julgada segundo a ontologia, mas tão somente pela sanção social que o modo de falar sobre elas confere. A cidade de Midgar me parece tão real na minha memória quanto o bairro em que eu passei a minha infância, e isso me é o suficiente para fazer dela um símbolo, figura sempre mutante de um lugar a partir do qual se possa pensar a condição humana, a adaptação dos homens às mais diversas e adversas circunstâncias, e sua tendência inelutável de sempre olhar para além com os olhos de aqui, com os meios que são disponíveis e com os meios que possam ser alcançados e até mesmo inventados.

          Até onde eu consiga me recordar, existe somente uma biblioteca em Midgar, que fica localizada no 62º andar do Shinra’s Building, sob responsabilidade do prefeito da cidade, que, sem mais nada para fazer, assume a função inócua de bibliotecário. No jogo, a biblioteca em si é bastante pequenina e pouco interessante, serve apenas para resolver um puzzle que o prefeito propõe, e nada mais. Outra biblioteca, que não está em Midgar, é mais interessante, aquela da cidade de Nibelheim, onde Sephiroth perde a sanidade após dias seguidos pesquisando seus volumes empoeirados em busca de descobrir o passado do Planeta. Gosto de imaginar a existência de uma biblioteca destas em Midgar, num daqueles distritos não visitados pelos personagens, cercada pelos onipresentes aparatos mecânicos e eletrônicos, e pelo contraste entre pobreza e luxo inspirado no universo ciberpunk. Seria numa biblioteca como essa que eu estaria lendo e escrevendo os textos de meu blog, um lugar excessivamente particular e ao mesmo tempo vagamente plausível, mirando a loucura da metrópole ao redor e pensando para além dela.

          A Biblioteca de Midgar está, portanto, aberta pra visitações, e é de lá de dentro que eu emito esse correio, a quem quer que se interesse pelas coisas que aqui escrevo.

Harold Bloom e o Cânone na Literatura

           Analogamente à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com palavras. E depois de certo momento, habitou-o s...