Deitado na ampla escuridão de pedra
e vazio do cárcere, um prisioneiro contempla seu destino e aguarda lentamente a
morte. Tudo ao seu redor é trevas, e o limite do espaço apenas se compensa pelo
tempo interminável de que ele dispõe. Como único subterfúgio, o prisioneiro se
refugia na liberdade de sua mente. Lá, se diverte com passatempos do intelecto,
e começa a imaginar a vaga possibilidade de uma liberdade efetiva. Ao meio-dia
de todo dia, um alçapão no topo do cárcere é aberto para fazer descer água e
comida, e nesse breve instante o prisioneiro pode ver, através de uma janela, a
cela contígua. Nela repousa um jaguar, companheiro no destino que lhe cabe,
silencioso e enigmático. Tal vizinhança não deve ser casual, assim pensa o
prisioneiro, e na escuridão de sua cela ele gasta longos anos a imaginar os
desígnios da providência divina.
Dessa forma se configura
parcialmente o conto “A escrita do deus”, de Jorge Luis Borges. Podemos imaginar as trevas e a prisão como mímese da própria cegueira. Projeção de uma imagem da realidade desfeita
de seus contornos aparentes, tão familiares a todos nós que cremos na aparência
do mundo como cremos numa verdade. O cego prisioneiro de seu cárcere
físico vive a possibilidade de liberdade
no intelecto, e nesse terreno especulativo concebe que a mente de Deus não lhe
é inteiramente inacessível. Vejamos como a fábula se desenvolve.
Tradições proféticas prediziam que o
fim do mundo seria conjurado pelo decifrador da escrita do deus. O prisioneiro
se recorda de que um dos símbolos do deus é o jaguar. Na pele do animal ele
concebe um quebra-cabeça cuja montagem lhe cabia. As manchas na pele do jaguar
de alguma forma traduziam a sentença apocalíptica, e agora lhe bastava meramente
compreender essa linguagem. Nesse labor, ele atravessa longos anos de especulações
estéreis. Até que num sonho, seguido de uma epifania, tal linguagem lhe é
revelada. O prisioneiro não mais ignora a escrita do deus, mas, ao invés de
pronunciar a sentença apocalíptica, ele se resigna perante seu próprio destino.
Ao final de uma terrível condição de prisioneiro, compartilhando da perspectiva
divina, ele descobre que Deus é indiferente aos destinos singulares dos
indivíduos.
Talvez mais absurdo do que não haver
Deus nenhum é haver um Deus que não se importa com a sua própria criação. Um
Deus ausente, que criou o mundo e se retirou dele, deixando apenas rastros de
sua imemorial presença. Borges nos apresenta a aproximação da divindade como
uma perda da dimensão de si próprio. O homem, ser inexoravelmente apartado de
Deus, é movido pela ânsia de procurá-lo, sob o risco de dissolver-se no fundo
de seu vazio achado.
O ensaio “Uma
vindicação do Falso Basilides” reconta as vicissitudes da heterodoxia gnóstica,
repondo Deus num palco em que a história da criação do mundo volta a ser
encenada. Para a fantasia teológica de Basilides, Deus, no princípio de tudo,
fez emanar de si algumas divindades que criaram um céu, do qual outras
divindades subalternas fizeram derivar um céu subalterno, do qual surgem mais
divindades e mais céus, e assim sucessivamente até um número gigantesco. O
último céu do fundo, o mais subalterno e o mais distorcido de todos,
corresponde ao mundo acessível aos nosso sentidos, e a divindade que o comanda é o Deus das Escrituras, esse Deus que restou aos homens acreditar
como se fosse o verdadeiro, quando na verdade ele não passa de um reflexo
longínquo de um Deus primordial e inacessível. Para Borges, essa confusa
cosmogonia tem a vantagem de resolver o problema do mal, pois este, longe de
provir da inconcebível bondade do Deus príncipe, resulta do abatimento infinito
do mundo entre espelhos de irrealidade e caos. Mas a vantagem ainda maior dessa
fábula é que nela: “(...) se prega não o nosso mal, mas nossa central
insignificância. Como nos caudalosos poentes da planície, o céu é apaixonado e
monumental e a terra é pobre” [Borges1: 69]. Talvez seja de mais interesse para o homem não uma teologia que o explique como um ser eleito,
criado a partir da liberdade e da benevolência de uma divindade única, mas sim
uma teologia que o derive de um mero acidente nos desvãos da criação, que o explique como um
refugo imprevisto nos planos da divindade, a qual então abandonou a criatura ao
léu num mundo degenerado e absurdo, que pouco faz lembrar os atributos
virtuosos da criação. Um Deus ausente, um Deus ansiosamente procurado pelo
homem, mas que ignora o valor de um tal esforço.
Harold Bloom comenta o ensaio em questão da seguinte maneira: “Para
Borges como para os gnósticos, a Criação e a Queda do cosmos e da humanidade
são o mesmo e único acontecimento”. “Um Deus morto ou desaparecido, ou, no
gnosticismo, um Deus de fora, retirado dessa falsa criação, é o único vestígio
de teísmo que resta em Borges” [Bloom: 446]. O gnosticismo
interessa a Borges no momento em que é capaz de representar a estupefação
do homem diante de um universo que continuamente o assombra, escondendo atrás
de si seus inextrincáveis mistérios. Borges “estiliza” o gnosticismo, realçando
nele sua cosmovisão potencialmente conflitante com os hábitos ortodoxos que atravessaram
o pensamento ocidental por quase dois milênios de história. Em outras palavras,
Borges atualiza o gnosticismo ao apresentá-lo como uma espécie de fábula sobre
a condição do homem no mundo, e sobre sua relação com aquilo que o transcende,
lançando sobre ele a sombra aterradora da dúvida. O gnosticismo de Borges se concentra no aspecto literário e fabuloso,
que, ao contrário de se envelhecer com o tempo histórico, parece ter se
alimentado dele. A ponto de Borges imaginar uma situação de conflito entre o cristianismo e o
gnosticismo, e projetá-la como uma luta permanente e disfarçada
que ainda continua a ser travada no fundo da realidade:
“Durante
os primeiros séculos de nossa era, os gnósticos disputaram com os cristãos. Foram
aniquilados, mas podemos representar sua vitória possível. Se Alexandria, e não
Roma, tivesse vencido, as estranhas e sombrias histórias que compendiei aqui
seriam coerentes, majestosas e cotidianas. Frases como a de Novalis: “a vida é
uma doença do espírito”, ou a de Rimbaud, desesperada: “A verdadeira vida está
ausente; não estamos no mundo”, fulgurariam nos livros canônicos. Especulações
como a (renegada) de Richter sobre a origem estelar da vida e sua casual
disseminação neste planeta conheceriam o assentimento incondicional dos
laboratórios piedosos. Em todo caso, que melhor dom podemos esperar que o de
sermos insignificantes, que maior glória para Deus que a de ser absolvido do
mundo?” [Borges1: 70]
Para absolver Deus dos infaustos destinos do mundo, talvez seja
necessário eximi-lo de responsabilidade pela criação. Deus, em sua grandiosa
indiferença, permanece salvo, e o homem, do lado de cá da realidade, apartado
inconsolavelmente dele, tem de assumir as rédeas de sua própria miséria. O
gnosticismo estilizado de Borges também perfaz uma espécie de ética, que é a de
por nos braços do homem a tarefa de resolver por si o problema do mal e do bem,
e não derivá-lo de alguma instância transcendente. Como
nos lembra Harold Bloom, Borges toma para si a ideia de Deus apenas para dizer
que Deus está ausente, e, se ele efetivamente existe, pouco ou nada diz
respeito aos infortúnios da criação.
Borges inventa diversas maneiras
de dizer que o homem está peremptoriamente apartado de Deus. Mais do que isso,
Borges inventa com a convicção de que qualquer invenção não basta, sempre
precisa de outras, sempre necessita desafiar-se e substituir-se, num processo
interminável de revelação e ocultamento. A verdadeira vida pode até estar ausente, mas
esse fato não nos exime de continuar a procurá-la, esteja ela onde esteja em
sua plenitude. Talvez por isso o mago da pirâmide de Qaholon, personagem
borgiano do conto aqui recontado, prisioneiro do cárcere físico e inquiridor da
escrita de Deus, não tenha proferido as palavras apocalípticas que ele pensou
supostamente ter descoberto. Agente duplo que compartilha da perspectiva divina
encarnado num corpo de homem, o mago é incapaz de abandonar esse corpo, mesmo
sabendo de sua relativa pequenez. Podemos imaginá-lo reinventando a escrita de
Deus, podemos imaginá-lo reescrevendo um mundo não de miséria, mas sim um mundo
capaz de abrigá-lo dignamente. Podemos imaginá-lo imaginando-nos, e
imaginarmos-nos imaginando-o. Deus não se comove pela condição humana, mas o
homem se comove profundamente por continuar a buscá-lo.
.BLOOM, Harold.
O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos
Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995.
.BORGES1,
Jorge Luis. Discussão. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
._______2.
O Aleph. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.