domingo, 24 de fevereiro de 2019

Roma (2018), de Alfonso Cuarón: realismo e expressividade mínima no cinema



           Roma é indiscutivelmente um filme belo. Mas o que, afinal, isso significa? Ou então, será que “ser belo” é tudo o que o filme é? A beleza cinematográfica de um filme participa exclusivamente do que o filme é como obra de arte? É preciso dizer muita coisa para esclarecer esse ponto, mas, sobretudo, no caso em questão, é preciso dizer muita coisa em contraponto ao burburinho que se tem erguido em torno do filme por ocasião de sua publicização e celebração.

          Minha motivação para escrever esse ensaio é a de levantar uma voz que faça contraste a certa maneira como o filme vem sendo recebido e criticado nos meios de circulação cultural mainstream. O filme opta por um estilo abertamente realista, e põe no centro de sua trama uma empregada doméstica de origem étnica indígena, a trabalhar numa casa de classe média no México dos anos 70. Isso é o suficiente para armar uma rede de adesões prévias que passa a controlar a expectativa do público quanto ao que está sendo exatamente representado aí. Mesmo se não houvesse nenhuma intencionalidade artística quanto a isso, a questão da identidade se coloca imperiosamente, pois o contexto cultural em que o filme é publicizado e celebrado é aquele no qual o problema identitário vem ganhando ao longo dos anos visibilidade e importância, ou seja: com ou sem justiça, o filme é julgado nos termos disso.

           E justamente porque a recepção do filme, nesse contexto, adere facilmente à questão identitária, há um tanto de injustiça crítica se passando por crítica bem informada e inteligente, e advinda, também justamente, daqueles grupos para quem a questão identitária é a mais candente na política das últimas décadas. Supostamente, a representação realista de Roma teria sido conivente com a realidade representada, por colocar na posição de subalternidade uma protagonista aparentemente um tanto adaptada à sua condição, e por estimular a pequena catarse da pequena empatia diante do desenvolvimento dessa adaptação. A tese que defendo neste ensaio, em contraste, consiste em apontar que, ao pressupor que o filme cumpra integralmente a adesão da protagonista a uma série de expectativas sobre como o subalterno deva ser comportar em situações tais como as retratadas, essa apreensão logra o efeito de ignorar muito do que o filme é como obra de arte, o que se apreende na atenção cerrada à sua espessura mimética, sua expressividade singular, e que se trata justamente de uma expressividade mínima, quase no nível de algo que já não pode ser facilmente conceituado, identificado, logicizado.
           Primeiramente, no entanto, gostaria de esclarecer alguns dos pressupostos a partir de onde falo.


O que é o cinema enquanto arte?

           Cinema é uma arte essencialmente superficial e limitada. Limitação essa dada no plano do constrangimento da obra pela forma, e no entendimento da forma enquanto tal. Os sentidos dos espectadores de cinema já estão por demais saturados de todos os outros filmes que eles já viram, e por tudo o que, na vida, lembre algo como um filme. Revitalizar esse embotamento dos sentidos, no cinema, não é coisa fácil, mas o espectador também precisa colaborar. Sobretudo, não pode se entregar à primeira impressão, à vontade de preencher a polissemia da imagem fílmica com os discursos da ordem do dia. Fazer isso é não ver, ouvir, pensar de maneira nenhuma. O cinema é uma arte que, a princípio, parece que se entrega toda de uma vez; mas talvez não seja bem assim.

           Em face a isso, os críticos de arte, em especial os especialistas de cinema, costumam figurar entre os piores “entendedores”. A linguagem da crítica facilmente vira jargão e conversa-fiada. Seja a crítica bem informada, culta, altamente especializada, seja a resenha massificada de última hora, ambas contribuem para que se ignore o trabalho de pensar os sentidos, ou seja, o exercício propriamente da estética. A pessoa facilmente se convence de que viu o que não viu e de que não viu o que viu. Supostamente, o “verdadeiro sentido” de uma obra residiria na operação lógico-discursiva que transforma a imagem em texto, em sistema de conceitos, e lhe aplica o selo de um lógos que pudesse se descolar da imagem como se esta nem mais existisse. Não raro, essa significação interpretativa da obra está sujeita às mais sutis mudanças de humor (sobretudo ao mau-humor) do espectador crítico na hora e após sua experiência com a obra. Ser arrogante com uma obra de cinema parece uma postura que, por si, já garante a alguém razão. Mas talvez as artes visuais, e também o cinema, sejam aquelas perante as quais sobretudo não se possa acreditar que a abstração de sua imagem num texto crítico esgote sua capacidade de dizer algo. Eis aí o que costuma irritar profundamente os críticos: eles frequentemente querem ter a última palavra.

           A possível compreensão de uma obra cinematográfica não pode ignorar que, imiscuído com o espectador culto, bem informado, crítico, está o espectador “não-artístico”, comum, massificado, ou mesmo o intensamente individual, isolado, solitário, desmontado de grandes preconceitos. A comunidade dos tipos comuns é o meio em que circula o homem das multidões, para falar com Poe, e essa comunidade de olhares é também constitutiva do próprio sentido da obra. O olhar inventado pelo cinema lida com uma espécie de “média” de todos os olhares individuais. Há acenos discursivos para cá e para lá, e cada um pode achar que compreendeu o verdadeiro sentido da obra quando detecta algum desses acenos. No entanto, uma obra de cinema que se pretendesse de uma significação absolutamente plena na superfície de sua aparição provavelmente seria péssima, e provavelmente trataria o espectador como um estúpido. Cinema trata do ver e ouvir, e muito do ver e ouvir precisa ficar inexplicado, como que casual, fora de ordem. Outras artes eventualmente pedem um espectador mais isolado, sensitivo, cerebral, mas o cinema pede um espectador um tanto rendido. Fato que obviamente não dispensa o pensamento, mas o constrange a termos um tanto mais generosos, e por isso mesmo “médios”.

           Voltamos então ao que foi dito no início, à superficialidade e limitação da arte cinematográfica. O aspecto potencialmente mítico e mitificante do cinema já foi por demais explorado e criticado em sua não tão longa história. Evoco principalmente o pensamento desenvolvido por Adorno e Horkheimer no capítulo sobre “A Indústria Cultural” na sua Dialética do Esclarecimento. Porém, o discurso pretensamente esclarecedor não desarma totalmente a idolatria, mas às vezes inventa uma outra, a idolatria ao conceito. Troca-se frequentemente um embotamento por outro. Mas uma arte que não demande e desafie a estética, ou seja, uma arte sem o pensamento dos sentidos, é qualquer outra coisa que não arte. E sobretudo, estamos num momento cultural em que é muito recompensador utilizar um objeto artístico como ensejo para falar de qualquer outra coisa que não dele mesmo, e assim não pensá-lo de modo nenhum.


           É inútil pretender que a arte seja política. É absolutamente impossível uma arte que não fale de mundo, não signifique mundo. Isso pode comparecer numa obra das mais diversas maneiras, mas se manifesta já no simples fato de uma obra ser sempre obra no mundo. O aspecto não-ficcional de uma obra está incluído em seu aspecto ficcional, e o constitui desde fora e desde dentro. É evidente que toda obra de arte é “política” em algum sentido, mas frequentemente não no sentido em que ela ou os discursos críticos levianos o declaram. É comum que uma obra se “despolitize” na sua adesão explícita a algum discurso político, e se “politize” na sua recusa ao discurso explícito. Novamente, é preciso dizer o óbvio: que o sentido da obra não reside exclusivamente na suposta discursividade mais aparente e tampouco na mais oculta. A transformação da arte em mero discurso é a morte da arte. E às vezes a arte subsiste até na sua mais equívoca celebração ou mesmo na mais injusta desforra contra ela. O que ela diz é principalmente o que não diz explicitamente de uma vez. Enfim, eis algo que também os inteligentes não perdoam na arte em geral, e frequentemente no cinema: a vagueza, a ambiguidade, a contradição, a abertura significativa, em suma, a polissemia, ou mesmo a assemia. Se tudo for dito de uma vez, a catarse, seja qual for, se realiza. Se algo ficou a ser dito, eu tenho de lidar em mim com esse silêncio inquieto, com esse vazio denso. Tenho de pensá-lo radicalmente, ou tenho de expiar como se não existisse, como se eu não tivesse visto e ouvido o que vi e ouvi. Mas está lá, é só voltar a ver e ouvir, de novo.


Expressões que escapam à identidade:


           Como já foi dito, o contexto cultural em que Roma se lança é aquele em que facilmente se arma uma rede de adesões prévias que controlam as expectativas sobre o que e como o filme deve representar. Afinal, quando se fala atualmente no plano político a respeito de identidades, o que está pressuposto é uma maneira de falar sobre determinadas coisas na qual as analogias entre elas passem a operar como igualdades. O idêntico, nesse caso, é o que está submetido às mesmas determinações, e como tal abstrai a questão de se essas determinações são exatamente as mesmas. A partir daí, atua implicitamente o constrangimento de que cada caso exemplar da coisa representada não seja apenas um caso isolado, mas seja o exemplo último da representação, ou seja, algo como um símbolo. O identitarismo cultural, entendido aqui como doutrina, quero dizer, como sistema de pensamento coesivamente fechado em si e paramentado de alguns conceitos e objetos um tanto homogêneos, não coloca para si mesmo a questão de até onde vai o instrumento de seu pensamento, a cola entre algumas poucas imagens de identidades e as coisas que elas efetivamente identificam.
           No plano estético, essa cola identitária possui claras limitações, e, se for admitida sem ressalvas, muito na obra de arte se perde. Para chegar a reconhecer o valor artístico do filme, em meio a coação do pensamento identitário, seria preciso, no mínimo, desarmar o maquinário de identificações que se colam facilmente à experiência com a obra. A identificação serve, quando muito, como hipótese interpretativa, como contrafactual, que tem de ser posto à prova pela renovada experiência ou pela memória. Não raro, a entrega dogmática a uma interpretação atesta não só a teimosia leviana do crítico mas também já aí um embotamento dos sentidos e da memória. A identidade é o instrumento do pensamento, mas costuma ser também o que permite esquecer o que a ela nunca se subsume.



A identidade de classe entre parte dos personagens, o diretor/criadores e parte considerável do público:

          Essa identificação é invocada sob a chave da catarse que o filme realizaria, a catarse da compaixão momentânea da burguesia com seus subalternos. Com frequência, e não por acaso, essa equação é apresentada justamente por alguns ilustrados membros de classe média, que provavelmente moraram numa casa como aquela, e tiveram uma empregada como aquela. Uma crítica como essa mal esconde o recalque em que se baseia. De fato, a compaixão momentânea burguesa corresponde, mais ou menos, ao arco narrativo da patroa, que precisa passar por uns maus bocados para só então perceber quem resta ao lado dela. Mas o próprio filme não se dobra a isso, ao mostrar as reservas da empregada perante as efusões compassivas, sua expressão melancólica entre a simpatia e o desconsolo. Também mostra a reconstituição das relações de trabalho mesmo após as efusões, como a não esquecer que é possível ser doce com os subalternos mantendo-os no mesmo lugar. A distância de classe, convivendo no mesmo espaço, não pressupõe episódios constantes de violência explícita, apesar de preparar um terreno para sua iminência. Certamente, os membros ilustres da classe média tenderão ao mal estar ao identificarem na constituição de suas próprias vidas o mecanismo que os permite serem sensíveis às dores dos outros e ao mesmo tempo impotentes perante elas. Eles tendem a julgar o contexto dessa identificação como hipócrita, e colam uma identificação como essa a um filme que, pelo menos para mim, parece mostrar outra coisa. O apagamento do subalterno se faz inclusive aí, quando pressupõe que o mais importante no filme é a catarse da pequena compaixão burguesa com os pobres. Mas ela sequer é o principal, é algo que fornece apoio às expressões, algo que também compõe cenário.


Identidade entre a beleza cinematográfica e conformismo da representação:

          Identificação essa invocada, não sem fundamento, em face da longa tradição realista, naturalista e documentarista das artes que, sobretudo no cinema, grassam nas Américas meridionais. A celebração do filme seria, assim, talvez a pior acusação contra ele. As massas, e sobretudo as massas cults, querem ver a pobreza representada, e se calhar de essa representação ser “bela”, soa quase como uma celebração da pobreza. Certamente, o senso comum crítico também já incorporou em si anticorpos contra esse procedimento, e o acusa como se à arte, e no caso à arte realista, já não coubesse correr o risco de mostrar a opressão, a injustiça, a violência, sem colar nisso eloquentes discursos revoltados sobre como todas essas coisas são ruins.
          Pois bem, a arte é essencialmente culpada, desde berço, essa é a sua condição social, a de se colocar, dentro da sociedade, como algo que não cumpre necessariamente função. Até por isso, julgam-se as obras como se elas devessem reivindicar essa função social, por exemplo, como se tivessem de realizar catarse. Tudo isso também faz parte do jogo com a arte, ela não pode fugir à responsabilização. No cinema, isso compõe aquela “média” dos olhares individuais, que o olhar verdadeiramente crítico não pode ignorar, mas da qual deve desviar, para ir de encontro à singularidade da coisa aí realizada. Mesmo que se peça à obra que ela jogue com a empatia, ela só poderá fazer isso com seus próprios meios.

           As artes visuais, sobretudo o cinema, fundadas que estão sob o império do olhar, abrem necessariamente uma distância com o supostamente representado. Justamente porque a imersão é sempre parcial, o cinema no âmbito da indústria cultural evoluiu no sentido de criar meios para realizar melhor a imersão: trilha sonora, personagens exemplificando tipos psicológicos, montagem que privilegia uma trama linear, fotorrealismo, etc. O cinema vai aos poucos deixando de ser sonho para ser realidade. Os espectadores já estão tão saturados desses procedimentos que até o naturalizam. Então, quando um filme, hoje, se propõe a compor paisagens urbanas e domésticas, ele lida com um espectador daquele modo acostumado. A tentação artística de apresentar imagens de choque é grande, como a despertar o espectador de seu lugar. Porém, chegamos numa situação em que o choque não desperta, o choque na verdade faz parte do esperado.

           Roma lida com isso à sua maneira, ao forçar o olhar a não se deixar capturar pelas paisagens, não imergir totalmente nelas. Há propositalmente uma monotonia no filme, a monotonia da distância imagética consciente de sua condição. O cinema está posto como algo que se sabe janela, e não se demove daí. A empatia artística, ao revelar sua essência ficcional, revela também a ficcionalidade de toda empatia. Novamente, eis algo que os inteligentes não perdoam. Eles querem que a obra artística seja redentora, e que realize a redenção nos termos deles, termos discursivos. Como pode a arte “mostrar” a pobreza e não “criticar” a pobreza? Como dizem, há uma “estetização da miséria”. Para os inteligentes, o pobre que serve à arte é aquele revoltado com a pobreza, ou cuja convulsão imoral é consequência da pobreza. Os pobres que servem ao realismo são como os personagens malditos dos romances do séc. XIX, são os desgraçados, os perdidões. Qualquer coisa diferente disso soa como condescendência com a ordem vigente.

           Sob esse juízo, um outro apagamento se realiza aí, o apagamento da revolta que não se diz, da revolta sem palavras. O filme não faz para a gente o trabalho de reconhecer isso. Ou então, dito de outra forma, a gente se acostumou tanto a ver representado o histrionismo da pobreza, que se recusa a ver outras expressões que não essa. O trabalho da atriz Yalitza Aparicio, nesse sentido, é de fato primoroso, e nele se manifesta toda a dimensão irônica da obra.


Identidade entre a mudez da protagonista e sua suposta inexpressividade:

          Essa identificação é talvez a mais terrivelmente cruel, a mais apagadora de singularidades, a mais ignorante ou mais pretensamente crítica. Simplesmente porque é a identificação que, transformando a imagem fílmica em discurso, há de esbarrar na protagonista como alguém incapaz de dizer algo, incapaz de lógos, e com isso dirá que o filme não diz nada. Pode-se ignorar então que as expressões da personagem, que as lentes tão pontualmente captam, estão no nível aquém ou além do semântico, pode-se ignorar como se essas expressões não existissem. Toda timidez carrega um pouco essa mácula, e a timidez potencializada pela miséria ainda mais. A vontade de sacudir a pessoa para que ela acorde, para que ela se comporte como gente comum, é imensa, e reflete toda a impaciência social perante aqueles que não têm voz, e/ou aparentemente não querem tê-la. É também toda a nossa arrogância contra os animais, seres essencialmente despidos de linguagem, ou ao menos despidos de linguagem humana, de todo modo seres a quem não é possível a lógica, e com quem toda a possível comunicação se dá ao nível da expressão.


           Mas a impaciência culta contra o filme Roma não é casual, e, como tentei demonstrar, contém-se no movimento cultural que ratifica algumas categorias de identidade como se devessem compor tudo o que é possível pensar sobre sociedade. Movimento cultural que, no seu desenvolvimento, simplesmente abole o pensamento sobre a espessura mimética da vida humana, e coloca a questão da liberdade nos termos de um eterno recitar o lugar de subalternidade da identidade entendida como minoritária, lugar encaixado perfeitamente numa hierarquia social que, só de ser pensada tão rigidamente, parece que se enrijece cada vez mais. Nessa hierarquia enrijecida, onde se colocaria um indivíduo como a protagonista do filme? Certamente, com um pouco de embotamento estético e tergiversação, não é difícil encontrar um lugar para ela, e toda celebração e premiação do filme deve mesmo se dar nos termos desse encaixe; mas eu reitero que isso não é tudo o que o filme diz. A ironia artística é um “dizer a mais” tensionado a partir do “dito” na obra. E que parte dessa ironia se encarne numa personagem aparentemente tão frágil e muda é algo que os bem pensantes dificilmente engolem calados. Ao verem o fantasma de suas doutrinas celebrado no cinema mainstream, acham que há algo errado, pois esse fantasma talvez tenha sido criado, historicamente, para não ser celebrado justamente aí. Mas até isso é um equívoco, pois a função histórica do fantasma se transformou, e agora serve até para fazer esquecer o que, na celebração ou na crítica à celebração, abstraído nele subsiste. Para esquecer que a expressão que não se absorve em lógos ainda é um atestado de dignidade do vivente, coisa da arte desde sempre.

Harold Bloom e o Cânone na Literatura

           Analogamente à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com palavras. E depois de certo momento, habitou-o s...