Analogamente
à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com
palavras. E depois de certo momento, habitou-o sobretudo com palavras
escritas. Isso implica que o que concebemos como mundo, o que
somos capazes de conceber como mundo, é algo que está inscrito como
tal, e sem isso o mundo que conhecemos seria outra coisa. Seria
materialmente outra coisa, historicamente outra coisa, aliás, sem
isso, nem história haveria, em muitos dos vários sentidos que lhe
damos hoje.
E
a história da inscrição do mundo sobre o planeta é também, em
parte, a história daquilo que aos poucos fomos chamando e
concentrando em torno da palavra literatura. A literatura foi
um instrumento de fundação da cultura como inscrição do mundo
sobre o planeta. A unidade do que ainda se pode reconhecer como
Ocidente recolhe-se toda aí nesse acontecimento de inscrição. O
que ainda pode se chamado de Ocidente é culturalmente é
inconcebível sem direta ou indireta remetência às epopeias de
Homero e às tragédias gregas, e à Bíblia, por mais estranhas e
pouco frequentadas essas obras nos sejam.
Deve-se
começar por aí, mas certamente há muito mais, um mar turbulento e
imponderável de inscrições. Esse mar permanece tenebroso e
colossal como sempre foi, mas desde então vem sendo devassado por
aventuras humanas. O mar é o símbolo mítico exemplar: encontro
entre o desconhecido e o comum, lugar do abismo caótico que talvez
nos apareça menos abissal e menos caos ao ser desafiado por homens.
Algumas dessas aventuras se tornam mais célebres do que outras, e
não podem deixar de inspirar epígonos. O conjunto do que é
celebrado entre os desafiantes convencionou ser chamado de Cânone,
apesar de esse nome agora nos invocar tantos equívocos e
incompreensões.
A
imagem mais comum de cânone é a de uma estante seleta de livros,
algo mais capaz de exclusões que de inclusões. A questão central
aqui é que não importa a priori o que se vai selecionar
entre o disponível, o importante é a imagem fundamental de uma
arrumação, uma estrutura ordenada. A imagem se impõe
necessariamente para toda e qualquer noção de cultura, e seus
critérios de seleção vêm depois, como uma consequência da
arrumação. A verdade da qual não podemos fugir nem mistificar é
que não há como ser um sujeito da cultura, de qualquer cultura, sem
introjetar suas formas de arrumação. Não há como evitar o valor,
pois até a esquiva já é uma valoração. A ideia de cânone parte
dessa necessidade.
Por
outro lado, o que é o Cânone, aquele que supostamente reflete os
melhores e maiores valores da cultura, os mais desejáveis e
admiráveis valores, bem, isso é um objeto de eterna disputa. E por
qualquer meio pelo qual disputemos o Cânone, ou até mesmo ao
disputarmos a necessidade de sua dissolução, estamos nos valendo
dos mesmos critérios com que algumas coisas são canonizadas, e
outras não. Trata-se de uma necessidade da cultura, e de seu
contínuo desenvolvimento histórico. Quem não reconhece isso ou
está enganado ou está querendo se enganar.
Mais
verdadeira que a verdade
A
literatura participa da fundação do mundo como inscrição sobre o
planeta. Certamente, esse acontecimento se degenera e apaga os traços
da origem, como tudo mais que existe. O acontecimento metafísico
mais fundamental talvez seja esse nascimento e apagamento, e o drama
de sua contínua rasura e perversão. Tudo o que um dia foi fundado
pelos homens está condenado a derivar.
Mas
os seres humanos não podem evitar a necessidade de darem significado
ao acontecimento de fundação. Sobretudo, não podem evitar a
necessidade de darem significado ao princípio. E pela própria
lógica da significação, o significado do princípio acaba se
tornando o significado principal. Ao descobrirmos o
significado do princípio, é como se descobríssemos o sentido em
que o tempo caminha. O significado do princípio torna-se principal
porque supostamente desvenda o sentido da história. Ao
desvendar o sentido da história, dá aos homens o poder de saber
algo sobre eles mesmos, frente às forças colossais e inumanas que
os submetem e limitam por todos os lados. Os mitos nascem da
necessidade de significação primordial, e em seu desenvolvimento
vão se cristalizando mais ou menos, segundo a função que cumpram
para os povos que deles se valem.
A
religião, a literatura, a filosofia, a ciência, por sua vez, e
obviamente não pelos mesmos meios e fins, se alimentam da vontade de
rivalizarem com os mitos como cristalizadoras da significação
primordial. Todas as instituições que resistem à deriva, fazem-no
como se quisessem se elevar acima do tempo, e dessa posição
superior pudessem desvendar o sentido da história, cristalizando-o
numa forma qualquer. Certamente, alguns desses significados resistem
mais do que outros, e na lei de suas resistências certamente podemos
encontrar causas acidentais e arbitrárias. Porém, ao lado dessas
causas, que de resto regem tudo mais, vamos encontrar também provas
de força, com que as significações competem umas com as
outras, e tendem a valorar umas às outras como representações
menores, condenadas a se degradarem na deriva significativa até que
sua representação nada mais signifique de pretensamente universal
e a-histórico.
O
problema da significação primordial é antes o problema de sua
resistência ao tempo, e depois, muito depois, vem a ser o
problema de sua verdade. A literatura não se apresenta
necessariamente como aquela que tem a ambição da verdade, e no
entanto sempre foi a forma cultural mais capacitada para resistir à
deriva significativa. Em consequência, sua forma de significação,
por mais submetida que tenha sido a contingências históricas,
aparece, em seus grandes momentos, como mais verdadeira que as
outras, e suas verdades chegam até nós como um vivificado desafio.
O tão mistificado critério estético, que valora algumas obras ou
autores em detrimento de outros, não pode ser sequer tocado sem
rendição ao poder significativo da literatura.
República
silenciosa
Literatura
é uma categoria apropriativa. A princípio, não há nenhum atributo
previamente garantido que permita dizer que um texto seja literário.
A nomeação de algo como literário participa de um ato cognitivo
incapaz de separar conhecimento e valor. Isso é válido também para
aqueles significados de “literatura” com o qual se nomeia o
conjunto de textos interessantes a uma determinada área da atividade
humana. A estrutura do conjunto, da coleção, da biblioteca,
certamente é relevante como figura de uma totalidade. Porém, o
determinante para se compreender o conteúdo da literatura é o fato
de que algumas obras, e não outras, foram incluídas aí.
O
ato de inclusão, no qual se indistingue conhecimento e valor, é o
essencial para se determinar o conteúdo da literatura. Por isso,
torna-se facilmente obsoleta a crítica de que o conceito de
literatura vem mudando ao longo dos séculos, como se a literatura
devesse ser definida a partir de um conceito, a partir de alguma
construção abstrata que isole algumas das qualidades dos textos e
lhes atribua a substância do literário. A literatura não tem
nenhum conceito: ela tem obras, indivíduos, unidades indivisíveis.
A literatura não é um espaço vazio dentro e delimitado por bordas
significativas: seu conteúdo é o fato de ela ser habitada,
populada, preenchida por objetos que têm o estranho hábito de se
comportarem também como sujeitos, a ponto de esses sujeitos nos fazerem
mais de objetos do que nós fazemos deles, a ponto de ditarem o que
somos, o que fomos, o que seremos, o que nem sabemos de nós mesmos.
Essa
república cinzenta de indivíduos mortos-vivos, de convivência
difícil e sempre reanimada por intrigas e conflitos, dá uma ideia
da pólis ideal da qual as nossas são apenas uma pálida imagem.
Mesmo nos terrores silenciosos de suas guerras e diplomacias
impossíveis, a república continua lá, continua habitada, composta
por indivíduos irredutíveis, cada um um universo singular feito de
janelas abertas para fora, cada um disponível para uma rica, longa e
interminável conversa. República repleta de tradições heráldicas,
e por isso mesmo ardente de renovadas promessas heroicas. A
literatura é feita do que foi feito dela, do que foi nela incluída,
e por isso está disponível para novas feituras e inclusões, e
sempre estará mudando ao longo dos mais séculos, assim não
conceituável. Para sempre disponível a inclusões. Mas não é
qualquer um que vai entrar.
Neste
momento, o crepúsculo pode ser uma aurora
Diz-se
que as melhores obras e autores nos fundaram tal como ainda somos.
Melhor talvez seria dizer que essas obras e autores se elevaram tão
acima do tempo que lhes coube, que o arco significativo que eles
descrevem só encontra fim, se é que finda mesmo, em algum lugar bem
além do horizonte que ainda nos cabe.
Essa
aparente permanência das grandes obras e autores confronta o
utilitarismo que rege atualmente as instituições de circulação
cultural. Por um lado, a devassa valorativa desencadeada pela
tendência democrática por onde caminhamos não pode permitir a
prevalência da literatura passada sobre o presente, por enxergar
nessa superioridade uma espécie de celebração de formas de
organização social em vias de superação. Por outro lado, a
apreciação do que antes se considerava a grande literatura parece
se esgotar no elogio do que nela é apenas um meio, como se a
literatura fosse um veículo de moralidades que precisam ser
preservadas do assalto de bárbaros. Toda e qualquer gratuidade
afrontosa deve ser justificada como porrete ou espantalho de uma
guerra da cultura contra si mesma.
A
primazia do critério estético, no ambiente universitário, não
pôde resistir ao desenvolvimento acadêmico dos estudos literários.
A literatura pertence àquele âmbito de saberes em que não se
separa impunemente conhecimento e valor. Ao lado de abordagens
literárias que sumariamente suspendem ou simplificam a questão do
valor literário, a ideia de cânone rebaixou-se a conceitos
rebaixados de política para justificar-se ideologicamente perante o
utilitarismo das instituições de circulação cultural.
Hoje,
mais do que nunca, disputa-se a ideia de Cânone como se qualquer
critério fosse digno de uma tal disputa. Confunde-se tal disputa com
o próprio funcionamento das instituições de circulação cultural.
Supostamente, se um autor se inclui no conteúdo de currículos
universitários, se é objeto de monografias, dissertações ou
teses, se é publicado por editoras de grande projeção pública, se
é premiado em concursos literários, se faz parte de alguma
jurássica Academia de Letras, se tem seus livros resenhados por
veículos de jornalismo cultural, então, supostamente, esse autor
está em vias de ser canonizado, segundo esse critério rebaixado do
que vem a ser a ideia de Cânone.
De
fato, sempre houve um certo mal-estar em relação a instituições
responsáveis por transmitir determinados valores culturais, um
mal-estar que sempre duvidou de se essas instituições eram
efetivamente transmissoras ou somente sancionadoras de valores. A
dúvida, até certo ponto, pôde conviver dialeticamente com
valorações, em vista de que uma considerável soma de
esforços individuais em nome de ideais maiores que as próprias
instituições às vezes tende a resultar em produções devidamente
“impessoais” e “objetivas”, ou seja, reconhecidamente maiores
do que os egos dos que se julgam representantes ou antagonistas
desses ideais. Mas a questão que se coloca hoje para a ideia de
Cânone é se esses ideais ainda podem ser reconhecidos como tais, ou
se precisam anular-se na identificação entre pretensos critérios
estéticos e signos de luta política numa guerra cultural suicida.
Harold
Bloom é um crítico literário assumidamente romântico, ou
seja, desses que ainda têm em seu horizonte ideais, e os fazem valer
como algo urgente e determinante. Em seu livro, tão pouco lido
quanto mais criticado, tece uma elegia para as instituições de
circulação cultural, sobretudo as universidades, enquanto faz
desfilar vertiginosamente seus critérios para a valoração da
literatura. Não precisamos acompanhá-lo no sentimento nem no tom de
quem se despede de um mundo em ruínas. Mas se amamos a literatura
que se quer grande, ou seja, aquela que tem algo a nos dizer muito
além do que pode ser resumido e conformado a nossos inflados
umbiguinhos, temos de reconhecer que os nós de sua transmissão não
se concentram mais nos lugares que hoje badalam reinvenções
gloriosas da roda.
Talvez
então a obra de Bloom possa ser lida a contrapelo de sua elegia, ao
inverso de seu crepúsculo. Talvez seja uma aurora o que esteja
surgindo. Que a grande literatura tenha sido alguma vez
institucionalizada, isso seria sim uma considerável objeção contra
ela. Mas se a cultura triunfante de hoje, sobretudo no meio
acadêmico, é aquela que celebra essa e outras desentronizações,
quem sabe a literatura que importe procure seu reino no lugar que lhe
seja mais adequado. No lugar de uma permanente errância, agonística,
desencontro, refundações, provas de força.
Um lugar que não seja lugar
algum, utopos.
A ideia de literatura tem a
ver com eleição, mas
seu parlamento está dissoluto no tempo, há um abismo de distância
que deve ser transposto, um mar ainda misterioso e mítico a
convocar para renovadas
aventuras.