sábado, 9 de março de 2019

Harold Bloom e o Cânone na Literatura


           Analogamente à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com palavras. E depois de certo momento, habitou-o sobretudo com palavras escritas. Isso implica que o que concebemos como mundo, o que somos capazes de conceber como mundo, é algo que está inscrito como tal, e sem isso o mundo que conhecemos seria outra coisa. Seria materialmente outra coisa, historicamente outra coisa, aliás, sem isso, nem história haveria, em muitos dos vários sentidos que lhe damos hoje.

          E a história da inscrição do mundo sobre o planeta é também, em parte, a história daquilo que aos poucos fomos chamando e concentrando em torno da palavra literatura. A literatura foi um instrumento de fundação da cultura como inscrição do mundo sobre o planeta. A unidade do que ainda se pode reconhecer como Ocidente recolhe-se toda aí nesse acontecimento de inscrição. O que ainda pode se chamado de Ocidente é culturalmente é inconcebível sem direta ou indireta remetência às epopeias de Homero e às tragédias gregas, e à Bíblia, por mais estranhas e pouco frequentadas essas obras nos sejam.

          Deve-se começar por aí, mas certamente há muito mais, um mar turbulento e imponderável de inscrições. Esse mar permanece tenebroso e colossal como sempre foi, mas desde então vem sendo devassado por aventuras humanas. O mar é o símbolo mítico exemplar: encontro entre o desconhecido e o comum, lugar do abismo caótico que talvez nos apareça menos abissal e menos caos ao ser desafiado por homens. Algumas dessas aventuras se tornam mais célebres do que outras, e não podem deixar de inspirar epígonos. O conjunto do que é celebrado entre os desafiantes convencionou ser chamado de Cânone, apesar de esse nome agora nos invocar tantos equívocos e incompreensões.



           A imagem mais comum de cânone é a de uma estante seleta de livros, algo mais capaz de exclusões que de inclusões. A questão central aqui é que não importa a priori o que se vai selecionar entre o disponível, o importante é a imagem fundamental de uma arrumação, uma estrutura ordenada. A imagem se impõe necessariamente para toda e qualquer noção de cultura, e seus critérios de seleção vêm depois, como uma consequência da arrumação. A verdade da qual não podemos fugir nem mistificar é que não há como ser um sujeito da cultura, de qualquer cultura, sem introjetar suas formas de arrumação. Não há como evitar o valor, pois até a esquiva já é uma valoração. A ideia de cânone parte dessa necessidade.

          Por outro lado, o que é o Cânone, aquele que supostamente reflete os melhores e maiores valores da cultura, os mais desejáveis e admiráveis valores, bem, isso é um objeto de eterna disputa. E por qualquer meio pelo qual disputemos o Cânone, ou até mesmo ao disputarmos a necessidade de sua dissolução, estamos nos valendo dos mesmos critérios com que algumas coisas são canonizadas, e outras não. Trata-se de uma necessidade da cultura, e de seu contínuo desenvolvimento histórico. Quem não reconhece isso ou está enganado ou está querendo se enganar.


Mais verdadeira que a verdade

          A literatura participa da fundação do mundo como inscrição sobre o planeta. Certamente, esse acontecimento se degenera e apaga os traços da origem, como tudo mais que existe. O acontecimento metafísico mais fundamental talvez seja esse nascimento e apagamento, e o drama de sua contínua rasura e perversão. Tudo o que um dia foi fundado pelos homens está condenado a derivar.

          Mas os seres humanos não podem evitar a necessidade de darem significado ao acontecimento de fundação. Sobretudo, não podem evitar a necessidade de darem significado ao princípio. E pela própria lógica da significação, o significado do princípio acaba se tornando o significado principal. Ao descobrirmos o significado do princípio, é como se descobríssemos o sentido em que o tempo caminha. O significado do princípio torna-se principal porque supostamente desvenda o sentido da história. Ao desvendar o sentido da história, dá aos homens o poder de saber algo sobre eles mesmos, frente às forças colossais e inumanas que os submetem e limitam por todos os lados. Os mitos nascem da necessidade de significação primordial, e em seu desenvolvimento vão se cristalizando mais ou menos, segundo a função que cumpram para os povos que deles se valem.

          A religião, a literatura, a filosofia, a ciência, por sua vez, e obviamente não pelos mesmos meios e fins, se alimentam da vontade de rivalizarem com os mitos como cristalizadoras da significação primordial. Todas as instituições que resistem à deriva, fazem-no como se quisessem se elevar acima do tempo, e dessa posição superior pudessem desvendar o sentido da história, cristalizando-o numa forma qualquer. Certamente, alguns desses significados resistem mais do que outros, e na lei de suas resistências certamente podemos encontrar causas acidentais e arbitrárias. Porém, ao lado dessas causas, que de resto regem tudo mais, vamos encontrar também provas de força, com que as significações competem umas com as outras, e tendem a valorar umas às outras como representações menores, condenadas a se degradarem na deriva significativa até que sua representação nada mais signifique de pretensamente universal e a-histórico.

          O problema da significação primordial é antes o problema de sua resistência ao tempo, e depois, muito depois, vem a ser o problema de sua verdade. A literatura não se apresenta necessariamente como aquela que tem a ambição da verdade, e no entanto sempre foi a forma cultural mais capacitada para resistir à deriva significativa. Em consequência, sua forma de significação, por mais submetida que tenha sido a contingências históricas, aparece, em seus grandes momentos, como mais verdadeira que as outras, e suas verdades chegam até nós como um vivificado desafio. O tão mistificado critério estético, que valora algumas obras ou autores em detrimento de outros, não pode ser sequer tocado sem rendição ao poder significativo da literatura.


República silenciosa

           Literatura é uma categoria apropriativa. A princípio, não há nenhum atributo previamente garantido que permita dizer que um texto seja literário. A nomeação de algo como literário participa de um ato cognitivo incapaz de separar conhecimento e valor. Isso é válido também para aqueles significados de “literatura” com o qual se nomeia o conjunto de textos interessantes a uma determinada área da atividade humana. A estrutura do conjunto, da coleção, da biblioteca, certamente é relevante como figura de uma totalidade. Porém, o determinante para se compreender o conteúdo da literatura é o fato de que algumas obras, e não outras, foram incluídas aí.

          O ato de inclusão, no qual se indistingue conhecimento e valor, é o essencial para se determinar o conteúdo da literatura. Por isso, torna-se facilmente obsoleta a crítica de que o conceito de literatura vem mudando ao longo dos séculos, como se a literatura devesse ser definida a partir de um conceito, a partir de alguma construção abstrata que isole algumas das qualidades dos textos e lhes atribua a substância do literário. A literatura não tem nenhum conceito: ela tem obras, indivíduos, unidades indivisíveis. A literatura não é um espaço vazio dentro e delimitado por bordas significativas: seu conteúdo é o fato de ela ser habitada, populada, preenchida por objetos que têm o estranho hábito de se comportarem também como sujeitos, a ponto de esses sujeitos nos fazerem mais de objetos do que nós fazemos deles, a ponto de ditarem o que somos, o que fomos, o que seremos, o que nem sabemos de nós mesmos.

          Essa república cinzenta de indivíduos mortos-vivos, de convivência difícil e sempre reanimada por intrigas e conflitos, dá uma ideia da pólis ideal da qual as nossas são apenas uma pálida imagem. Mesmo nos terrores silenciosos de suas guerras e diplomacias impossíveis, a república continua lá, continua habitada, composta por indivíduos irredutíveis, cada um um universo singular feito de janelas abertas para fora, cada um disponível para uma rica, longa e interminável conversa. República repleta de tradições heráldicas, e por isso mesmo ardente de renovadas promessas heroicas. A literatura é feita do que foi feito dela, do que foi nela incluída, e por isso está disponível para novas feituras e inclusões, e sempre estará mudando ao longo dos mais séculos, assim não conceituável. Para sempre disponível a inclusões. Mas não é qualquer um que vai entrar.


Neste momento, o crepúsculo pode ser uma aurora

           Diz-se que as melhores obras e autores nos fundaram tal como ainda somos. Melhor talvez seria dizer que essas obras e autores se elevaram tão acima do tempo que lhes coube, que o arco significativo que eles descrevem só encontra fim, se é que finda mesmo, em algum lugar bem além do horizonte que ainda nos cabe.

          Essa aparente permanência das grandes obras e autores confronta o utilitarismo que rege atualmente as instituições de circulação cultural. Por um lado, a devassa valorativa desencadeada pela tendência democrática por onde caminhamos não pode permitir a prevalência da literatura passada sobre o presente, por enxergar nessa superioridade uma espécie de celebração de formas de organização social em vias de superação. Por outro lado, a apreciação do que antes se considerava a grande literatura parece se esgotar no elogio do que nela é apenas um meio, como se a literatura fosse um veículo de moralidades que precisam ser preservadas do assalto de bárbaros. Toda e qualquer gratuidade afrontosa deve ser justificada como porrete ou espantalho de uma guerra da cultura contra si mesma.

          A primazia do critério estético, no ambiente universitário, não pôde resistir ao desenvolvimento acadêmico dos estudos literários. A literatura pertence àquele âmbito de saberes em que não se separa impunemente conhecimento e valor. Ao lado de abordagens literárias que sumariamente suspendem ou simplificam a questão do valor literário, a ideia de cânone rebaixou-se a conceitos rebaixados de política para justificar-se ideologicamente perante o utilitarismo das instituições de circulação cultural.

          Hoje, mais do que nunca, disputa-se a ideia de Cânone como se qualquer critério fosse digno de uma tal disputa. Confunde-se tal disputa com o próprio funcionamento das instituições de circulação cultural. Supostamente, se um autor se inclui no conteúdo de currículos universitários, se é objeto de monografias, dissertações ou teses, se é publicado por editoras de grande projeção pública, se é premiado em concursos literários, se faz parte de alguma jurássica Academia de Letras, se tem seus livros resenhados por veículos de jornalismo cultural, então, supostamente, esse autor está em vias de ser canonizado, segundo esse critério rebaixado do que vem a ser a ideia de Cânone.

          De fato, sempre houve um certo mal-estar em relação a instituições responsáveis por transmitir determinados valores culturais, um mal-estar que sempre duvidou de se essas instituições eram efetivamente transmissoras ou somente sancionadoras de valores. A dúvida, até certo ponto, pôde conviver dialeticamente com valorações, em vista de que uma considerável soma de esforços individuais em nome de ideais maiores que as próprias instituições às vezes tende a resultar em produções devidamente “impessoais” e “objetivas”, ou seja, reconhecidamente maiores do que os egos dos que se julgam representantes ou antagonistas desses ideais. Mas a questão que se coloca hoje para a ideia de Cânone é se esses ideais ainda podem ser reconhecidos como tais, ou se precisam anular-se na identificação entre pretensos critérios estéticos e signos de luta política numa guerra cultural suicida.
 

          Harold Bloom é um crítico literário assumidamente romântico, ou seja, desses que ainda têm em seu horizonte ideais, e os fazem valer como algo urgente e determinante. Em seu livro, tão pouco lido quanto mais criticado, tece uma elegia para as instituições de circulação cultural, sobretudo as universidades, enquanto faz desfilar vertiginosamente seus critérios para a valoração da literatura. Não precisamos acompanhá-lo no sentimento nem no tom de quem se despede de um mundo em ruínas. Mas se amamos a literatura que se quer grande, ou seja, aquela que tem algo a nos dizer muito além do que pode ser resumido e conformado a nossos inflados umbiguinhos, temos de reconhecer que os nós de sua transmissão não se concentram mais nos lugares que hoje badalam reinvenções gloriosas da roda.

          Talvez então a obra de Bloom possa ser lida a contrapelo de sua elegia, ao inverso de seu crepúsculo. Talvez seja uma aurora o que esteja surgindo. Que a grande literatura tenha sido alguma vez institucionalizada, isso seria sim uma considerável objeção contra ela. Mas se a cultura triunfante de hoje, sobretudo no meio acadêmico, é aquela que celebra essa e outras desentronizações, quem sabe a literatura que importe procure seu reino no lugar que lhe seja mais adequado. No lugar de uma permanente errância, agonística, desencontro, refundações, provas de força. Um lugar que não seja lugar algum, utopos. A ideia de literatura tem a ver com eleição, mas seu parlamento está dissoluto no tempo, há um abismo de distância que deve ser transposto, um mar ainda misterioso e mítico a convocar para renovadas aventuras.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Roma (2018), de Alfonso Cuarón: realismo e expressividade mínima no cinema



           Roma é indiscutivelmente um filme belo. Mas o que, afinal, isso significa? Ou então, será que “ser belo” é tudo o que o filme é? A beleza cinematográfica de um filme participa exclusivamente do que o filme é como obra de arte? É preciso dizer muita coisa para esclarecer esse ponto, mas, sobretudo, no caso em questão, é preciso dizer muita coisa em contraponto ao burburinho que se tem erguido em torno do filme por ocasião de sua publicização e celebração.

          Minha motivação para escrever esse ensaio é a de levantar uma voz que faça contraste a certa maneira como o filme vem sendo recebido e criticado nos meios de circulação cultural mainstream. O filme opta por um estilo abertamente realista, e põe no centro de sua trama uma empregada doméstica de origem étnica indígena, a trabalhar numa casa de classe média no México dos anos 70. Isso é o suficiente para armar uma rede de adesões prévias que passa a controlar a expectativa do público quanto ao que está sendo exatamente representado aí. Mesmo se não houvesse nenhuma intencionalidade artística quanto a isso, a questão da identidade se coloca imperiosamente, pois o contexto cultural em que o filme é publicizado e celebrado é aquele no qual o problema identitário vem ganhando ao longo dos anos visibilidade e importância, ou seja: com ou sem justiça, o filme é julgado nos termos disso.

           E justamente porque a recepção do filme, nesse contexto, adere facilmente à questão identitária, há um tanto de injustiça crítica se passando por crítica bem informada e inteligente, e advinda, também justamente, daqueles grupos para quem a questão identitária é a mais candente na política das últimas décadas. Supostamente, a representação realista de Roma teria sido conivente com a realidade representada, por colocar na posição de subalternidade uma protagonista aparentemente um tanto adaptada à sua condição, e por estimular a pequena catarse da pequena empatia diante do desenvolvimento dessa adaptação. A tese que defendo neste ensaio, em contraste, consiste em apontar que, ao pressupor que o filme cumpra integralmente a adesão da protagonista a uma série de expectativas sobre como o subalterno deva ser comportar em situações tais como as retratadas, essa apreensão logra o efeito de ignorar muito do que o filme é como obra de arte, o que se apreende na atenção cerrada à sua espessura mimética, sua expressividade singular, e que se trata justamente de uma expressividade mínima, quase no nível de algo que já não pode ser facilmente conceituado, identificado, logicizado.
           Primeiramente, no entanto, gostaria de esclarecer alguns dos pressupostos a partir de onde falo.


O que é o cinema enquanto arte?

           Cinema é uma arte essencialmente superficial e limitada. Limitação essa dada no plano do constrangimento da obra pela forma, e no entendimento da forma enquanto tal. Os sentidos dos espectadores de cinema já estão por demais saturados de todos os outros filmes que eles já viram, e por tudo o que, na vida, lembre algo como um filme. Revitalizar esse embotamento dos sentidos, no cinema, não é coisa fácil, mas o espectador também precisa colaborar. Sobretudo, não pode se entregar à primeira impressão, à vontade de preencher a polissemia da imagem fílmica com os discursos da ordem do dia. Fazer isso é não ver, ouvir, pensar de maneira nenhuma. O cinema é uma arte que, a princípio, parece que se entrega toda de uma vez; mas talvez não seja bem assim.

           Em face a isso, os críticos de arte, em especial os especialistas de cinema, costumam figurar entre os piores “entendedores”. A linguagem da crítica facilmente vira jargão e conversa-fiada. Seja a crítica bem informada, culta, altamente especializada, seja a resenha massificada de última hora, ambas contribuem para que se ignore o trabalho de pensar os sentidos, ou seja, o exercício propriamente da estética. A pessoa facilmente se convence de que viu o que não viu e de que não viu o que viu. Supostamente, o “verdadeiro sentido” de uma obra residiria na operação lógico-discursiva que transforma a imagem em texto, em sistema de conceitos, e lhe aplica o selo de um lógos que pudesse se descolar da imagem como se esta nem mais existisse. Não raro, essa significação interpretativa da obra está sujeita às mais sutis mudanças de humor (sobretudo ao mau-humor) do espectador crítico na hora e após sua experiência com a obra. Ser arrogante com uma obra de cinema parece uma postura que, por si, já garante a alguém razão. Mas talvez as artes visuais, e também o cinema, sejam aquelas perante as quais sobretudo não se possa acreditar que a abstração de sua imagem num texto crítico esgote sua capacidade de dizer algo. Eis aí o que costuma irritar profundamente os críticos: eles frequentemente querem ter a última palavra.

           A possível compreensão de uma obra cinematográfica não pode ignorar que, imiscuído com o espectador culto, bem informado, crítico, está o espectador “não-artístico”, comum, massificado, ou mesmo o intensamente individual, isolado, solitário, desmontado de grandes preconceitos. A comunidade dos tipos comuns é o meio em que circula o homem das multidões, para falar com Poe, e essa comunidade de olhares é também constitutiva do próprio sentido da obra. O olhar inventado pelo cinema lida com uma espécie de “média” de todos os olhares individuais. Há acenos discursivos para cá e para lá, e cada um pode achar que compreendeu o verdadeiro sentido da obra quando detecta algum desses acenos. No entanto, uma obra de cinema que se pretendesse de uma significação absolutamente plena na superfície de sua aparição provavelmente seria péssima, e provavelmente trataria o espectador como um estúpido. Cinema trata do ver e ouvir, e muito do ver e ouvir precisa ficar inexplicado, como que casual, fora de ordem. Outras artes eventualmente pedem um espectador mais isolado, sensitivo, cerebral, mas o cinema pede um espectador um tanto rendido. Fato que obviamente não dispensa o pensamento, mas o constrange a termos um tanto mais generosos, e por isso mesmo “médios”.

           Voltamos então ao que foi dito no início, à superficialidade e limitação da arte cinematográfica. O aspecto potencialmente mítico e mitificante do cinema já foi por demais explorado e criticado em sua não tão longa história. Evoco principalmente o pensamento desenvolvido por Adorno e Horkheimer no capítulo sobre “A Indústria Cultural” na sua Dialética do Esclarecimento. Porém, o discurso pretensamente esclarecedor não desarma totalmente a idolatria, mas às vezes inventa uma outra, a idolatria ao conceito. Troca-se frequentemente um embotamento por outro. Mas uma arte que não demande e desafie a estética, ou seja, uma arte sem o pensamento dos sentidos, é qualquer outra coisa que não arte. E sobretudo, estamos num momento cultural em que é muito recompensador utilizar um objeto artístico como ensejo para falar de qualquer outra coisa que não dele mesmo, e assim não pensá-lo de modo nenhum.


           É inútil pretender que a arte seja política. É absolutamente impossível uma arte que não fale de mundo, não signifique mundo. Isso pode comparecer numa obra das mais diversas maneiras, mas se manifesta já no simples fato de uma obra ser sempre obra no mundo. O aspecto não-ficcional de uma obra está incluído em seu aspecto ficcional, e o constitui desde fora e desde dentro. É evidente que toda obra de arte é “política” em algum sentido, mas frequentemente não no sentido em que ela ou os discursos críticos levianos o declaram. É comum que uma obra se “despolitize” na sua adesão explícita a algum discurso político, e se “politize” na sua recusa ao discurso explícito. Novamente, é preciso dizer o óbvio: que o sentido da obra não reside exclusivamente na suposta discursividade mais aparente e tampouco na mais oculta. A transformação da arte em mero discurso é a morte da arte. E às vezes a arte subsiste até na sua mais equívoca celebração ou mesmo na mais injusta desforra contra ela. O que ela diz é principalmente o que não diz explicitamente de uma vez. Enfim, eis algo que também os inteligentes não perdoam na arte em geral, e frequentemente no cinema: a vagueza, a ambiguidade, a contradição, a abertura significativa, em suma, a polissemia, ou mesmo a assemia. Se tudo for dito de uma vez, a catarse, seja qual for, se realiza. Se algo ficou a ser dito, eu tenho de lidar em mim com esse silêncio inquieto, com esse vazio denso. Tenho de pensá-lo radicalmente, ou tenho de expiar como se não existisse, como se eu não tivesse visto e ouvido o que vi e ouvi. Mas está lá, é só voltar a ver e ouvir, de novo.


Expressões que escapam à identidade:


           Como já foi dito, o contexto cultural em que Roma se lança é aquele em que facilmente se arma uma rede de adesões prévias que controlam as expectativas sobre o que e como o filme deve representar. Afinal, quando se fala atualmente no plano político a respeito de identidades, o que está pressuposto é uma maneira de falar sobre determinadas coisas na qual as analogias entre elas passem a operar como igualdades. O idêntico, nesse caso, é o que está submetido às mesmas determinações, e como tal abstrai a questão de se essas determinações são exatamente as mesmas. A partir daí, atua implicitamente o constrangimento de que cada caso exemplar da coisa representada não seja apenas um caso isolado, mas seja o exemplo último da representação, ou seja, algo como um símbolo. O identitarismo cultural, entendido aqui como doutrina, quero dizer, como sistema de pensamento coesivamente fechado em si e paramentado de alguns conceitos e objetos um tanto homogêneos, não coloca para si mesmo a questão de até onde vai o instrumento de seu pensamento, a cola entre algumas poucas imagens de identidades e as coisas que elas efetivamente identificam.
           No plano estético, essa cola identitária possui claras limitações, e, se for admitida sem ressalvas, muito na obra de arte se perde. Para chegar a reconhecer o valor artístico do filme, em meio a coação do pensamento identitário, seria preciso, no mínimo, desarmar o maquinário de identificações que se colam facilmente à experiência com a obra. A identificação serve, quando muito, como hipótese interpretativa, como contrafactual, que tem de ser posto à prova pela renovada experiência ou pela memória. Não raro, a entrega dogmática a uma interpretação atesta não só a teimosia leviana do crítico mas também já aí um embotamento dos sentidos e da memória. A identidade é o instrumento do pensamento, mas costuma ser também o que permite esquecer o que a ela nunca se subsume.



A identidade de classe entre parte dos personagens, o diretor/criadores e parte considerável do público:

          Essa identificação é invocada sob a chave da catarse que o filme realizaria, a catarse da compaixão momentânea da burguesia com seus subalternos. Com frequência, e não por acaso, essa equação é apresentada justamente por alguns ilustrados membros de classe média, que provavelmente moraram numa casa como aquela, e tiveram uma empregada como aquela. Uma crítica como essa mal esconde o recalque em que se baseia. De fato, a compaixão momentânea burguesa corresponde, mais ou menos, ao arco narrativo da patroa, que precisa passar por uns maus bocados para só então perceber quem resta ao lado dela. Mas o próprio filme não se dobra a isso, ao mostrar as reservas da empregada perante as efusões compassivas, sua expressão melancólica entre a simpatia e o desconsolo. Também mostra a reconstituição das relações de trabalho mesmo após as efusões, como a não esquecer que é possível ser doce com os subalternos mantendo-os no mesmo lugar. A distância de classe, convivendo no mesmo espaço, não pressupõe episódios constantes de violência explícita, apesar de preparar um terreno para sua iminência. Certamente, os membros ilustres da classe média tenderão ao mal estar ao identificarem na constituição de suas próprias vidas o mecanismo que os permite serem sensíveis às dores dos outros e ao mesmo tempo impotentes perante elas. Eles tendem a julgar o contexto dessa identificação como hipócrita, e colam uma identificação como essa a um filme que, pelo menos para mim, parece mostrar outra coisa. O apagamento do subalterno se faz inclusive aí, quando pressupõe que o mais importante no filme é a catarse da pequena compaixão burguesa com os pobres. Mas ela sequer é o principal, é algo que fornece apoio às expressões, algo que também compõe cenário.


Identidade entre a beleza cinematográfica e conformismo da representação:

          Identificação essa invocada, não sem fundamento, em face da longa tradição realista, naturalista e documentarista das artes que, sobretudo no cinema, grassam nas Américas meridionais. A celebração do filme seria, assim, talvez a pior acusação contra ele. As massas, e sobretudo as massas cults, querem ver a pobreza representada, e se calhar de essa representação ser “bela”, soa quase como uma celebração da pobreza. Certamente, o senso comum crítico também já incorporou em si anticorpos contra esse procedimento, e o acusa como se à arte, e no caso à arte realista, já não coubesse correr o risco de mostrar a opressão, a injustiça, a violência, sem colar nisso eloquentes discursos revoltados sobre como todas essas coisas são ruins.
          Pois bem, a arte é essencialmente culpada, desde berço, essa é a sua condição social, a de se colocar, dentro da sociedade, como algo que não cumpre necessariamente função. Até por isso, julgam-se as obras como se elas devessem reivindicar essa função social, por exemplo, como se tivessem de realizar catarse. Tudo isso também faz parte do jogo com a arte, ela não pode fugir à responsabilização. No cinema, isso compõe aquela “média” dos olhares individuais, que o olhar verdadeiramente crítico não pode ignorar, mas da qual deve desviar, para ir de encontro à singularidade da coisa aí realizada. Mesmo que se peça à obra que ela jogue com a empatia, ela só poderá fazer isso com seus próprios meios.

           As artes visuais, sobretudo o cinema, fundadas que estão sob o império do olhar, abrem necessariamente uma distância com o supostamente representado. Justamente porque a imersão é sempre parcial, o cinema no âmbito da indústria cultural evoluiu no sentido de criar meios para realizar melhor a imersão: trilha sonora, personagens exemplificando tipos psicológicos, montagem que privilegia uma trama linear, fotorrealismo, etc. O cinema vai aos poucos deixando de ser sonho para ser realidade. Os espectadores já estão tão saturados desses procedimentos que até o naturalizam. Então, quando um filme, hoje, se propõe a compor paisagens urbanas e domésticas, ele lida com um espectador daquele modo acostumado. A tentação artística de apresentar imagens de choque é grande, como a despertar o espectador de seu lugar. Porém, chegamos numa situação em que o choque não desperta, o choque na verdade faz parte do esperado.

           Roma lida com isso à sua maneira, ao forçar o olhar a não se deixar capturar pelas paisagens, não imergir totalmente nelas. Há propositalmente uma monotonia no filme, a monotonia da distância imagética consciente de sua condição. O cinema está posto como algo que se sabe janela, e não se demove daí. A empatia artística, ao revelar sua essência ficcional, revela também a ficcionalidade de toda empatia. Novamente, eis algo que os inteligentes não perdoam. Eles querem que a obra artística seja redentora, e que realize a redenção nos termos deles, termos discursivos. Como pode a arte “mostrar” a pobreza e não “criticar” a pobreza? Como dizem, há uma “estetização da miséria”. Para os inteligentes, o pobre que serve à arte é aquele revoltado com a pobreza, ou cuja convulsão imoral é consequência da pobreza. Os pobres que servem ao realismo são como os personagens malditos dos romances do séc. XIX, são os desgraçados, os perdidões. Qualquer coisa diferente disso soa como condescendência com a ordem vigente.

           Sob esse juízo, um outro apagamento se realiza aí, o apagamento da revolta que não se diz, da revolta sem palavras. O filme não faz para a gente o trabalho de reconhecer isso. Ou então, dito de outra forma, a gente se acostumou tanto a ver representado o histrionismo da pobreza, que se recusa a ver outras expressões que não essa. O trabalho da atriz Yalitza Aparicio, nesse sentido, é de fato primoroso, e nele se manifesta toda a dimensão irônica da obra.


Identidade entre a mudez da protagonista e sua suposta inexpressividade:

          Essa identificação é talvez a mais terrivelmente cruel, a mais apagadora de singularidades, a mais ignorante ou mais pretensamente crítica. Simplesmente porque é a identificação que, transformando a imagem fílmica em discurso, há de esbarrar na protagonista como alguém incapaz de dizer algo, incapaz de lógos, e com isso dirá que o filme não diz nada. Pode-se ignorar então que as expressões da personagem, que as lentes tão pontualmente captam, estão no nível aquém ou além do semântico, pode-se ignorar como se essas expressões não existissem. Toda timidez carrega um pouco essa mácula, e a timidez potencializada pela miséria ainda mais. A vontade de sacudir a pessoa para que ela acorde, para que ela se comporte como gente comum, é imensa, e reflete toda a impaciência social perante aqueles que não têm voz, e/ou aparentemente não querem tê-la. É também toda a nossa arrogância contra os animais, seres essencialmente despidos de linguagem, ou ao menos despidos de linguagem humana, de todo modo seres a quem não é possível a lógica, e com quem toda a possível comunicação se dá ao nível da expressão.


           Mas a impaciência culta contra o filme Roma não é casual, e, como tentei demonstrar, contém-se no movimento cultural que ratifica algumas categorias de identidade como se devessem compor tudo o que é possível pensar sobre sociedade. Movimento cultural que, no seu desenvolvimento, simplesmente abole o pensamento sobre a espessura mimética da vida humana, e coloca a questão da liberdade nos termos de um eterno recitar o lugar de subalternidade da identidade entendida como minoritária, lugar encaixado perfeitamente numa hierarquia social que, só de ser pensada tão rigidamente, parece que se enrijece cada vez mais. Nessa hierarquia enrijecida, onde se colocaria um indivíduo como a protagonista do filme? Certamente, com um pouco de embotamento estético e tergiversação, não é difícil encontrar um lugar para ela, e toda celebração e premiação do filme deve mesmo se dar nos termos desse encaixe; mas eu reitero que isso não é tudo o que o filme diz. A ironia artística é um “dizer a mais” tensionado a partir do “dito” na obra. E que parte dessa ironia se encarne numa personagem aparentemente tão frágil e muda é algo que os bem pensantes dificilmente engolem calados. Ao verem o fantasma de suas doutrinas celebrado no cinema mainstream, acham que há algo errado, pois esse fantasma talvez tenha sido criado, historicamente, para não ser celebrado justamente aí. Mas até isso é um equívoco, pois a função histórica do fantasma se transformou, e agora serve até para fazer esquecer o que, na celebração ou na crítica à celebração, abstraído nele subsiste. Para esquecer que a expressão que não se absorve em lógos ainda é um atestado de dignidade do vivente, coisa da arte desde sempre.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Um céu de estrelas sem nome



          Sensações se misturam com memórias e memórias com sensações, de tal modo que em alguns recantos da mente é impossível distingui-las. No geral, em nossa semiconsciência de tudo, aceitamos a metáfora do cérebro como um computador, e à memória capitulamos a mera função de armazenadora de informações. Mas em verdade memórias não são iguais a informações.


Todos já tiveram alguma experiência parecida: olhando fotos de um passado distante, a memória reconstitui não somente as cenas das imagens, mas também as alegrias e as dores daquele momento e de outros, outras cenas de outras imagens adjacentes, breves vultos dos lugares que visitamos naquele tempo, as esperanças que tínhamos na época, os sonhos que em algum beco da vida se perderam, as pessoas e os afetos que a elas dedicamos, e até cheiros e gostos. Tudo isso está de certa forma guardado no cérebro, e no entanto não é acessível imediatamente. A memória arrasta atrás de si todo tipo de aleatoriedade, ela é caótica e autorreferencial, e em seu egoísmo parece se defender contra o pragmatismo do mundo informático.



Tenho o costume de olhar para o céu estrelado noturno, do terraço de minha casa, a procurar as estrelas cujas posições, por hábito, até já reconheço. Sou um amante de astronomia muito preguiçoso, e praticamente nem saberia dizer o nome das estrelas que identifico, e de fato nem me importo com isso. O céu noturno da cidade também não ajuda muito, costuma ser bastante pobre, bastante ofuscado. Porém, é o céu que tenho, e o meu hábito de olhá-lo, o meu terraço e minha preguiça constituem todos uma solidez de caráter ao longo de anos moldada por circunstâncias diversas. É o lugar que tenho para pensar sobre as coisas, onde monologo, onde organizo ideias, onde imagino projetos, onde leio, onde costumo escrever. Se não tivesse esse céu, esse terraço, esse hábito, seria menos do que sou, seria menos Daniel.


Se tento relembrar de quando veio tudo isso, recordo do já remoto ano de 2002, em sua soma de circunstâncias que tinham algum significado para mim. Era uma época de algumas transformações e decisões. Havia mudado recentemente para a casa em que ainda moro, após um ano me adaptando ao clima e ritmo da cidade grande, Rio de Janeiro. Havia começado a estudar num cursinho preparatório, abandonando o início do Ensino Médio num colégio público, para pretensamente me dedicar ao processo seletivo do Colégio Naval. Havia conhecido novos colegas e perdido os antigos na virada do ano, e por estarem num ambiente em comum e possuírem aspirações semelhantes, os novos colegas compartilhavam um certo tipo de mentalidade que eu também assumi. Foi o ano em que meu pai conseguiu comprar um computador, e pela primeira vez eu tive acesso à internet, aquela ainda discada e que a gente só acessava de madrugada ou nos finais de semana após 14:00 de sábado, para gastar só um pulso, mas que mal ou bem me punha em contato com novos universos cheios de possibilidades e segredos. Foi o ano em que me vi como um relativamente bom estudante, eu que sempre fui mediano e medíocre em tudo que fazia. Foi o ano em que precisei abandonar a paixão por videogames que até então tinha, pois não dava mais para conciliar o estudo com os videogames por mais que eu quisesse.


E enfim, foi o ano em que talvez tenha nascido em mim algum tipo de espiritualidade, justamente aquela que tem a ver com olhar para o céu noturno no meu terraço, e devanear com o fato de que a vida que se leva é apenas uma entre milhões, um só caminho num labirinto de escolhas e decisões, caminho que se parece empobrecer em possibilidades a cada passo que se dá nele. Porém, se tento encontrar uma via de acesso àquele passado, minha memória não fornece de pronto as informações que listei acima. O que de fato me faz remeter àquele passado é uma canção, das muitas que ouvia na época. Em seu traçado melancólico e simples, minha memória se colou a ela, desenhando na mente a imagem daquele serzinho que eu era.



Pouco há nessa canção que figure aquilo que minha memória ergueu em torno dela, como o muro que cerca um jardim invisível de plantas selvagens a que alude Fernando Pessoa num poema. Seu apelo para mim apenas parece ter crescido ao longo dos anos, pois como um gatilho temporal (Chrono Trigger) sua lembrança me desperta um amálgama de sensações adormecidas, com tudo o que elas contêm de saudade, nostalgia, distância, ingenuidade, amortecimento. Desde o momento em que a ouvi pela primeira vez, senti o poder que ela exerceria sobre mim, e de certa forma criei sobre ela uma espécie de culto, e ao longo do tempo fui cavando no peito um buraco para lá guardá-la, com todas as sensações adjacentes e lembranças. Um buraco no peito que não é apenas alegoria, pois literalmente dói a cada momento em que seu vazio é tocado por mãos curiosas.


Memórias e sensações são indistinguíveis, e isso talvez fique mais claro quando falamos das músicas que ouvíamos num certo passado. A canção tema de Schala ficou enterrada na minha memória como referência das coisas daquele tempo, suas dúvidas, suas agonias, suas indecisões, suas possibilidades, suas esperanças. E toda vez em que a ouço, as imagens do passado vêm uma a uma, e da mesma forma que vêm precisam ir embora para o lugar de onde vieram, para permanecerem o que são, sensações que de nada servem senão para comporem o cenário de uma sensibilidade. Quando me pego ouvindo essa canção, retorno para a primeira vez em que, naquele passado terraço, me vi olhando para o céu noturno com a certeza de que a terra não é o centro do universo, e essa simples constatação nunca perdeu sua força radical, porque em geral conduzimos a vida como se o umbigo fosse o centro do universo, e lembrar que isso não é bem assim não deixa de ser uma revolução particular.


Quando abro os olhos e me vejo no presente, sendo o que sou, um longo caminho percorrido, no terraço de minha casa e ao fundo o céu noturno, penso que alguma coisa existe aí, que algo vive uma vida bem saudável e singular, e se vive assim é porque tem seu devido valor. Porém, na mesma proporção em que essa forma de vida é saudável e valorosa, ela também é incomunicável, e falar sobre ela é já despir ao ridículo a banalidade de um indivíduo, na tentativa patética de dizer aquilo que não deve ser dito, aquilo que deve morrer com cada um porque assim é seu inelutável destino.


E esse talvez seja o fato mais penoso de as memórias se indistinguirem de sensações. Pois os fatos mais íntimos que nos compõem a todos nós, justamente aqueles cuja profundeza e vastidão fariam jus ao oceano, são também aqueles a que faltam palavras devidas, e se nós tentamos forçá-los a dizer o que supostamente queremos, logo descambam em sentimentalidade, e cedo ou tarde nos vemos sozinhos, ninguém restou para ouvir nossa ladainha, e isso é bem justo porque afinal era tudo muito chato mesmo.


Se de certo modo compartilhamos objetos culturais em comum, não partilhamos o imaginário que em torno deles criamos, e essa é a sina de uma sociedade cada vez mais conectada, falar sobre as mesmas coisas sem de fato se comunicar. Talvez por isso que a arte, sendo a única comunicação verdadeira, precisa fabular os universos que pretende contar, porque falar diretamente sobre eles é já calá-los na intenção de os revelar, e arte sempre fala de um terceiro para fazer um segundo chegar até um primeiro.


Quanto a mim, fico com o terraço de minha casa, meu céu noturno, meus livros e sonhos, na soma de catástrofes e reconstruções que compõem cada íntima vida. Sei que falar sobre eles é de certa forma mentir à intenção de contá-los, e a intrigada teia de memórias e sensações que o tempo teceu para capturar o passado continuará oculta. Precisamos aprender o ofício de enterrar tesouros sem a esperança de recuperá-los um dia. Trancar as mais bonitas joias num baú anônimo e secreto, e sobre elas fazer o mais absoluto silêncio.

Harold Bloom e o Cânone na Literatura

           Analogamente à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com palavras. E depois de certo momento, habitou-o s...