sábado, 9 de março de 2019

Harold Bloom e o Cânone na Literatura


           Analogamente à dominação espacial do planeta, a humanidade habitou o mundo com palavras. E depois de certo momento, habitou-o sobretudo com palavras escritas. Isso implica que o que concebemos como mundo, o que somos capazes de conceber como mundo, é algo que está inscrito como tal, e sem isso o mundo que conhecemos seria outra coisa. Seria materialmente outra coisa, historicamente outra coisa, aliás, sem isso, nem história haveria, em muitos dos vários sentidos que lhe damos hoje.

          E a história da inscrição do mundo sobre o planeta é também, em parte, a história daquilo que aos poucos fomos chamando e concentrando em torno da palavra literatura. A literatura foi um instrumento de fundação da cultura como inscrição do mundo sobre o planeta. A unidade do que ainda se pode reconhecer como Ocidente recolhe-se toda aí nesse acontecimento de inscrição. O que ainda pode se chamado de Ocidente é culturalmente é inconcebível sem direta ou indireta remetência às epopeias de Homero e às tragédias gregas, e à Bíblia, por mais estranhas e pouco frequentadas essas obras nos sejam.

          Deve-se começar por aí, mas certamente há muito mais, um mar turbulento e imponderável de inscrições. Esse mar permanece tenebroso e colossal como sempre foi, mas desde então vem sendo devassado por aventuras humanas. O mar é o símbolo mítico exemplar: encontro entre o desconhecido e o comum, lugar do abismo caótico que talvez nos apareça menos abissal e menos caos ao ser desafiado por homens. Algumas dessas aventuras se tornam mais célebres do que outras, e não podem deixar de inspirar epígonos. O conjunto do que é celebrado entre os desafiantes convencionou ser chamado de Cânone, apesar de esse nome agora nos invocar tantos equívocos e incompreensões.



           A imagem mais comum de cânone é a de uma estante seleta de livros, algo mais capaz de exclusões que de inclusões. A questão central aqui é que não importa a priori o que se vai selecionar entre o disponível, o importante é a imagem fundamental de uma arrumação, uma estrutura ordenada. A imagem se impõe necessariamente para toda e qualquer noção de cultura, e seus critérios de seleção vêm depois, como uma consequência da arrumação. A verdade da qual não podemos fugir nem mistificar é que não há como ser um sujeito da cultura, de qualquer cultura, sem introjetar suas formas de arrumação. Não há como evitar o valor, pois até a esquiva já é uma valoração. A ideia de cânone parte dessa necessidade.

          Por outro lado, o que é o Cânone, aquele que supostamente reflete os melhores e maiores valores da cultura, os mais desejáveis e admiráveis valores, bem, isso é um objeto de eterna disputa. E por qualquer meio pelo qual disputemos o Cânone, ou até mesmo ao disputarmos a necessidade de sua dissolução, estamos nos valendo dos mesmos critérios com que algumas coisas são canonizadas, e outras não. Trata-se de uma necessidade da cultura, e de seu contínuo desenvolvimento histórico. Quem não reconhece isso ou está enganado ou está querendo se enganar.


Mais verdadeira que a verdade

          A literatura participa da fundação do mundo como inscrição sobre o planeta. Certamente, esse acontecimento se degenera e apaga os traços da origem, como tudo mais que existe. O acontecimento metafísico mais fundamental talvez seja esse nascimento e apagamento, e o drama de sua contínua rasura e perversão. Tudo o que um dia foi fundado pelos homens está condenado a derivar.

          Mas os seres humanos não podem evitar a necessidade de darem significado ao acontecimento de fundação. Sobretudo, não podem evitar a necessidade de darem significado ao princípio. E pela própria lógica da significação, o significado do princípio acaba se tornando o significado principal. Ao descobrirmos o significado do princípio, é como se descobríssemos o sentido em que o tempo caminha. O significado do princípio torna-se principal porque supostamente desvenda o sentido da história. Ao desvendar o sentido da história, dá aos homens o poder de saber algo sobre eles mesmos, frente às forças colossais e inumanas que os submetem e limitam por todos os lados. Os mitos nascem da necessidade de significação primordial, e em seu desenvolvimento vão se cristalizando mais ou menos, segundo a função que cumpram para os povos que deles se valem.

          A religião, a literatura, a filosofia, a ciência, por sua vez, e obviamente não pelos mesmos meios e fins, se alimentam da vontade de rivalizarem com os mitos como cristalizadoras da significação primordial. Todas as instituições que resistem à deriva, fazem-no como se quisessem se elevar acima do tempo, e dessa posição superior pudessem desvendar o sentido da história, cristalizando-o numa forma qualquer. Certamente, alguns desses significados resistem mais do que outros, e na lei de suas resistências certamente podemos encontrar causas acidentais e arbitrárias. Porém, ao lado dessas causas, que de resto regem tudo mais, vamos encontrar também provas de força, com que as significações competem umas com as outras, e tendem a valorar umas às outras como representações menores, condenadas a se degradarem na deriva significativa até que sua representação nada mais signifique de pretensamente universal e a-histórico.

          O problema da significação primordial é antes o problema de sua resistência ao tempo, e depois, muito depois, vem a ser o problema de sua verdade. A literatura não se apresenta necessariamente como aquela que tem a ambição da verdade, e no entanto sempre foi a forma cultural mais capacitada para resistir à deriva significativa. Em consequência, sua forma de significação, por mais submetida que tenha sido a contingências históricas, aparece, em seus grandes momentos, como mais verdadeira que as outras, e suas verdades chegam até nós como um vivificado desafio. O tão mistificado critério estético, que valora algumas obras ou autores em detrimento de outros, não pode ser sequer tocado sem rendição ao poder significativo da literatura.


República silenciosa

           Literatura é uma categoria apropriativa. A princípio, não há nenhum atributo previamente garantido que permita dizer que um texto seja literário. A nomeação de algo como literário participa de um ato cognitivo incapaz de separar conhecimento e valor. Isso é válido também para aqueles significados de “literatura” com o qual se nomeia o conjunto de textos interessantes a uma determinada área da atividade humana. A estrutura do conjunto, da coleção, da biblioteca, certamente é relevante como figura de uma totalidade. Porém, o determinante para se compreender o conteúdo da literatura é o fato de que algumas obras, e não outras, foram incluídas aí.

          O ato de inclusão, no qual se indistingue conhecimento e valor, é o essencial para se determinar o conteúdo da literatura. Por isso, torna-se facilmente obsoleta a crítica de que o conceito de literatura vem mudando ao longo dos séculos, como se a literatura devesse ser definida a partir de um conceito, a partir de alguma construção abstrata que isole algumas das qualidades dos textos e lhes atribua a substância do literário. A literatura não tem nenhum conceito: ela tem obras, indivíduos, unidades indivisíveis. A literatura não é um espaço vazio dentro e delimitado por bordas significativas: seu conteúdo é o fato de ela ser habitada, populada, preenchida por objetos que têm o estranho hábito de se comportarem também como sujeitos, a ponto de esses sujeitos nos fazerem mais de objetos do que nós fazemos deles, a ponto de ditarem o que somos, o que fomos, o que seremos, o que nem sabemos de nós mesmos.

          Essa república cinzenta de indivíduos mortos-vivos, de convivência difícil e sempre reanimada por intrigas e conflitos, dá uma ideia da pólis ideal da qual as nossas são apenas uma pálida imagem. Mesmo nos terrores silenciosos de suas guerras e diplomacias impossíveis, a república continua lá, continua habitada, composta por indivíduos irredutíveis, cada um um universo singular feito de janelas abertas para fora, cada um disponível para uma rica, longa e interminável conversa. República repleta de tradições heráldicas, e por isso mesmo ardente de renovadas promessas heroicas. A literatura é feita do que foi feito dela, do que foi nela incluída, e por isso está disponível para novas feituras e inclusões, e sempre estará mudando ao longo dos mais séculos, assim não conceituável. Para sempre disponível a inclusões. Mas não é qualquer um que vai entrar.


Neste momento, o crepúsculo pode ser uma aurora

           Diz-se que as melhores obras e autores nos fundaram tal como ainda somos. Melhor talvez seria dizer que essas obras e autores se elevaram tão acima do tempo que lhes coube, que o arco significativo que eles descrevem só encontra fim, se é que finda mesmo, em algum lugar bem além do horizonte que ainda nos cabe.

          Essa aparente permanência das grandes obras e autores confronta o utilitarismo que rege atualmente as instituições de circulação cultural. Por um lado, a devassa valorativa desencadeada pela tendência democrática por onde caminhamos não pode permitir a prevalência da literatura passada sobre o presente, por enxergar nessa superioridade uma espécie de celebração de formas de organização social em vias de superação. Por outro lado, a apreciação do que antes se considerava a grande literatura parece se esgotar no elogio do que nela é apenas um meio, como se a literatura fosse um veículo de moralidades que precisam ser preservadas do assalto de bárbaros. Toda e qualquer gratuidade afrontosa deve ser justificada como porrete ou espantalho de uma guerra da cultura contra si mesma.

          A primazia do critério estético, no ambiente universitário, não pôde resistir ao desenvolvimento acadêmico dos estudos literários. A literatura pertence àquele âmbito de saberes em que não se separa impunemente conhecimento e valor. Ao lado de abordagens literárias que sumariamente suspendem ou simplificam a questão do valor literário, a ideia de cânone rebaixou-se a conceitos rebaixados de política para justificar-se ideologicamente perante o utilitarismo das instituições de circulação cultural.

          Hoje, mais do que nunca, disputa-se a ideia de Cânone como se qualquer critério fosse digno de uma tal disputa. Confunde-se tal disputa com o próprio funcionamento das instituições de circulação cultural. Supostamente, se um autor se inclui no conteúdo de currículos universitários, se é objeto de monografias, dissertações ou teses, se é publicado por editoras de grande projeção pública, se é premiado em concursos literários, se faz parte de alguma jurássica Academia de Letras, se tem seus livros resenhados por veículos de jornalismo cultural, então, supostamente, esse autor está em vias de ser canonizado, segundo esse critério rebaixado do que vem a ser a ideia de Cânone.

          De fato, sempre houve um certo mal-estar em relação a instituições responsáveis por transmitir determinados valores culturais, um mal-estar que sempre duvidou de se essas instituições eram efetivamente transmissoras ou somente sancionadoras de valores. A dúvida, até certo ponto, pôde conviver dialeticamente com valorações, em vista de que uma considerável soma de esforços individuais em nome de ideais maiores que as próprias instituições às vezes tende a resultar em produções devidamente “impessoais” e “objetivas”, ou seja, reconhecidamente maiores do que os egos dos que se julgam representantes ou antagonistas desses ideais. Mas a questão que se coloca hoje para a ideia de Cânone é se esses ideais ainda podem ser reconhecidos como tais, ou se precisam anular-se na identificação entre pretensos critérios estéticos e signos de luta política numa guerra cultural suicida.
 

          Harold Bloom é um crítico literário assumidamente romântico, ou seja, desses que ainda têm em seu horizonte ideais, e os fazem valer como algo urgente e determinante. Em seu livro, tão pouco lido quanto mais criticado, tece uma elegia para as instituições de circulação cultural, sobretudo as universidades, enquanto faz desfilar vertiginosamente seus critérios para a valoração da literatura. Não precisamos acompanhá-lo no sentimento nem no tom de quem se despede de um mundo em ruínas. Mas se amamos a literatura que se quer grande, ou seja, aquela que tem algo a nos dizer muito além do que pode ser resumido e conformado a nossos inflados umbiguinhos, temos de reconhecer que os nós de sua transmissão não se concentram mais nos lugares que hoje badalam reinvenções gloriosas da roda.

          Talvez então a obra de Bloom possa ser lida a contrapelo de sua elegia, ao inverso de seu crepúsculo. Talvez seja uma aurora o que esteja surgindo. Que a grande literatura tenha sido alguma vez institucionalizada, isso seria sim uma considerável objeção contra ela. Mas se a cultura triunfante de hoje, sobretudo no meio acadêmico, é aquela que celebra essa e outras desentronizações, quem sabe a literatura que importe procure seu reino no lugar que lhe seja mais adequado. No lugar de uma permanente errância, agonística, desencontro, refundações, provas de força. Um lugar que não seja lugar algum, utopos. A ideia de literatura tem a ver com eleição, mas seu parlamento está dissoluto no tempo, há um abismo de distância que deve ser transposto, um mar ainda misterioso e mítico a convocar para renovadas aventuras.

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