Sensações se misturam
com memórias e memórias com sensações, de tal modo que em alguns recantos da
mente é impossível distingui-las. No geral, em nossa semiconsciência de tudo, aceitamos
a metáfora do cérebro como um computador, e à memória capitulamos a mera função
de armazenadora de informações. Mas em verdade memórias não são iguais a
informações.
Todos já tiveram alguma
experiência parecida: olhando fotos de um passado distante, a memória
reconstitui não somente as cenas das imagens, mas também as alegrias e as dores
daquele momento e de outros, outras cenas de outras imagens adjacentes, breves
vultos dos lugares que visitamos naquele tempo, as esperanças que tínhamos na
época, os sonhos que em algum beco da vida se perderam, as pessoas e os afetos
que a elas dedicamos, e até cheiros e gostos. Tudo isso está de certa forma
guardado no cérebro, e no entanto não é acessível imediatamente. A memória
arrasta atrás de si todo tipo de aleatoriedade, ela é caótica e
autorreferencial, e em seu egoísmo parece se defender contra o pragmatismo do
mundo informático.
Tenho o costume de
olhar para o céu estrelado noturno, do terraço de minha casa, a procurar as
estrelas cujas posições, por hábito, até já reconheço. Sou um amante de
astronomia muito preguiçoso, e praticamente nem saberia dizer o nome das
estrelas que identifico, e de fato nem me importo com isso. O céu noturno da
cidade também não ajuda muito, costuma ser bastante pobre, bastante ofuscado.
Porém, é o céu que tenho, e o meu hábito de olhá-lo, o meu terraço e minha
preguiça constituem todos uma solidez de caráter ao longo de anos moldada por
circunstâncias diversas. É o lugar que tenho para pensar sobre as coisas, onde
monologo, onde organizo ideias, onde imagino projetos, onde leio, onde costumo
escrever. Se não tivesse esse céu, esse terraço, esse hábito, seria menos do
que sou, seria menos Daniel.
Se tento relembrar de
quando veio tudo isso, recordo do já remoto ano de 2002, em sua soma de
circunstâncias que tinham algum significado para mim. Era uma época de algumas
transformações e decisões. Havia mudado recentemente para a casa em que ainda
moro, após um ano me adaptando ao clima e ritmo da cidade grande, Rio de
Janeiro. Havia começado a estudar num cursinho preparatório, abandonando o
início do Ensino Médio num colégio público, para pretensamente me dedicar ao
processo seletivo do Colégio Naval. Havia conhecido novos colegas e perdido os
antigos na virada do ano, e por estarem num ambiente em comum e possuírem
aspirações semelhantes, os novos colegas compartilhavam um certo tipo de
mentalidade que eu também assumi. Foi o ano em que meu pai conseguiu comprar um
computador, e pela primeira vez eu tive acesso à internet, aquela ainda discada
e que a gente só acessava de madrugada ou nos finais de semana após 14:00 de
sábado, para gastar só um pulso, mas que mal ou bem me punha em contato com
novos universos cheios de possibilidades e segredos. Foi o ano em que me vi
como um relativamente bom estudante, eu que sempre fui mediano e medíocre em
tudo que fazia. Foi o ano em que precisei abandonar a paixão por videogames que
até então tinha, pois não dava mais para conciliar o estudo com os videogames
por mais que eu quisesse.
E enfim, foi o ano em
que talvez tenha nascido em mim algum tipo de espiritualidade, justamente
aquela que tem a ver com olhar para o céu noturno no meu terraço, e devanear
com o fato de que a vida que se leva é apenas uma entre milhões, um só caminho
num labirinto de escolhas e decisões, caminho que se parece empobrecer em
possibilidades a cada passo que se dá nele. Porém, se tento encontrar uma via
de acesso àquele passado, minha memória não fornece de pronto as informações
que listei acima. O que de fato me faz remeter àquele passado é uma canção, das
muitas que ouvia na época. Em seu traçado melancólico e simples, minha memória
se colou a ela, desenhando na mente a imagem daquele serzinho que eu era.
Pouco há nessa canção que
figure aquilo que minha memória ergueu em torno dela, como o muro que cerca um
jardim invisível de plantas selvagens a que alude Fernando Pessoa num poema. Seu
apelo para mim apenas parece ter crescido ao longo dos anos, pois como um gatilho temporal (Chrono Trigger) sua
lembrança me desperta um amálgama de sensações adormecidas, com tudo o que elas
contêm de saudade, nostalgia, distância, ingenuidade, amortecimento. Desde o
momento em que a ouvi pela primeira vez, senti o poder que ela exerceria sobre
mim, e de certa forma criei sobre ela uma espécie de culto, e ao longo do tempo
fui cavando no peito um buraco para lá guardá-la, com todas as sensações
adjacentes e lembranças. Um buraco no peito que não é apenas alegoria, pois
literalmente dói a cada momento em que seu vazio é tocado por mãos curiosas.
Memórias e sensações
são indistinguíveis, e isso talvez fique mais claro quando falamos das músicas
que ouvíamos num certo passado. A canção tema de Schala ficou enterrada na
minha memória como referência das coisas daquele tempo, suas dúvidas, suas
agonias, suas indecisões, suas possibilidades, suas esperanças. E toda vez em
que a ouço, as imagens do passado vêm uma a uma, e da mesma forma que vêm
precisam ir embora para o lugar de onde vieram, para permanecerem o que são,
sensações que de nada servem senão para comporem o cenário de uma
sensibilidade. Quando me pego ouvindo essa canção, retorno para a primeira vez
em que, naquele passado terraço, me vi olhando para o céu noturno com a certeza
de que a terra não é o centro do universo, e essa simples constatação nunca
perdeu sua força radical, porque em geral conduzimos a vida como se o umbigo
fosse o centro do universo, e lembrar que isso não é bem assim não deixa de ser
uma revolução particular.
Quando abro os olhos e
me vejo no presente, sendo o que sou, um longo caminho percorrido, no terraço
de minha casa e ao fundo o céu noturno, penso que alguma coisa existe aí, que
algo vive uma vida bem saudável e singular, e se vive assim é porque tem seu
devido valor. Porém, na mesma proporção em que essa forma de vida é saudável e
valorosa, ela também é incomunicável, e falar sobre ela é já despir ao ridículo
a banalidade de um indivíduo, na tentativa patética de dizer aquilo que não
deve ser dito, aquilo que deve morrer com cada um porque assim é seu inelutável
destino.
E esse talvez seja o
fato mais penoso de as memórias se indistinguirem de sensações. Pois os fatos
mais íntimos que nos compõem a todos nós, justamente aqueles cuja profundeza e
vastidão fariam jus ao oceano, são também aqueles a que faltam palavras devidas,
e se nós tentamos forçá-los a dizer o que supostamente queremos, logo descambam
em sentimentalidade, e cedo ou tarde nos vemos sozinhos, ninguém restou para
ouvir nossa ladainha, e isso é bem justo porque afinal era tudo muito chato
mesmo.
Se de certo modo
compartilhamos objetos culturais em comum, não partilhamos o imaginário que em
torno deles criamos, e essa é a sina de uma sociedade cada vez mais conectada,
falar sobre as mesmas coisas sem de fato se comunicar. Talvez por isso que a
arte, sendo a única comunicação verdadeira, precisa fabular os universos que
pretende contar, porque falar diretamente sobre eles é já calá-los na intenção
de os revelar, e arte sempre fala de um terceiro para fazer um segundo chegar
até um primeiro.
Quanto a mim, fico com
o terraço de minha casa, meu céu noturno, meus livros e sonhos, na soma de
catástrofes e reconstruções que compõem cada íntima vida. Sei que falar sobre
eles é de certa forma mentir à intenção de contá-los, e a intrigada teia de
memórias e sensações que o tempo teceu para capturar o passado continuará
oculta. Precisamos aprender o ofício de enterrar tesouros sem a esperança de
recuperá-los um dia. Trancar as mais bonitas joias num baú anônimo e secreto, e
sobre elas fazer o mais absoluto silêncio.