quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O Deus ausente de Borges




      Deitado na ampla escuridão de pedra e vazio do cárcere, um prisioneiro contempla seu destino e aguarda lentamente a morte. Tudo ao seu redor é trevas, e o limite do espaço apenas se compensa pelo tempo interminável de que ele dispõe. Como único subterfúgio, o prisioneiro se refugia na liberdade de sua mente. Lá, se diverte com passatempos do intelecto, e começa a imaginar a vaga possibilidade de uma liberdade efetiva. Ao meio-dia de todo dia, um alçapão no topo do cárcere é aberto para fazer descer água e comida, e nesse breve instante o prisioneiro pode ver, através de uma janela, a cela contígua. Nela repousa um jaguar, companheiro no destino que lhe cabe, silencioso e enigmático. Tal vizinhança não deve ser casual, assim pensa o prisioneiro, e na escuridão de sua cela ele gasta longos anos a imaginar os desígnios da providência divina.


       Dessa forma se configura parcialmente o conto “A escrita do deus”, de Jorge Luis Borges. Podemos imaginar as trevas e a prisão como mímese da própria cegueira. Projeção de uma imagem da realidade desfeita de seus contornos aparentes, tão familiares a todos nós que cremos na aparência do mundo como cremos numa verdade. O cego prisioneiro de seu cárcere físico  vive a possibilidade de liberdade no intelecto, e nesse terreno especulativo concebe que a mente de Deus não lhe é inteiramente inacessível. Vejamos como a fábula se desenvolve.


       Tradições proféticas prediziam que o fim do mundo seria conjurado pelo decifrador da escrita do deus. O prisioneiro se recorda de que um dos símbolos do deus é o jaguar. Na pele do animal ele concebe um quebra-cabeça cuja montagem lhe cabia. As manchas na pele do jaguar de alguma forma traduziam a sentença apocalíptica, e agora lhe bastava meramente compreender essa linguagem. Nesse labor, ele atravessa longos anos de especulações estéreis. Até que num sonho, seguido de uma epifania, tal linguagem lhe é revelada. O prisioneiro não mais ignora a escrita do deus, mas, ao invés de pronunciar a sentença apocalíptica, ele se resigna perante seu próprio destino. Ao final de uma terrível condição de prisioneiro, compartilhando da perspectiva divina, ele descobre que Deus é indiferente aos destinos singulares dos indivíduos.


        Talvez mais absurdo do que não haver Deus nenhum é haver um Deus que não se importa com a sua própria criação. Um Deus ausente, que criou o mundo e se retirou dele, deixando apenas rastros de sua imemorial presença. Borges nos apresenta a aproximação da divindade como uma perda da dimensão de si próprio. O homem, ser inexoravelmente apartado de Deus, é movido pela ânsia de procurá-lo, sob o risco de dissolver-se no fundo de seu vazio achado.

O ensaio “Uma vindicação do Falso Basilides” reconta as vicissitudes da heterodoxia gnóstica, repondo Deus num palco em que a história da criação do mundo volta a ser encenada. Para a fantasia teológica de Basilides, Deus, no princípio de tudo, fez emanar de si algumas divindades que criaram um céu, do qual outras divindades subalternas fizeram derivar um céu subalterno, do qual surgem mais divindades e mais céus, e assim sucessivamente até um número gigantesco. O último céu do fundo, o mais subalterno e o mais distorcido de todos, corresponde ao mundo acessível aos nosso sentidos, e a divindade que o comanda é o Deus das Escrituras, esse Deus que restou aos homens acreditar como se fosse o verdadeiro, quando na verdade ele não passa de um reflexo longínquo de um Deus primordial e inacessível. Para Borges, essa confusa cosmogonia tem a vantagem de resolver o problema do mal, pois este, longe de provir da inconcebível bondade do Deus príncipe, resulta do abatimento infinito do mundo entre espelhos de irrealidade e caos. Mas a vantagem ainda maior dessa fábula é que nela: “(...) se prega não o nosso mal, mas nossa central insignificância. Como nos caudalosos poentes da planície, o céu é apaixonado e monumental e a terra é pobre” [Borges1: 69]. Talvez seja de mais interesse para o homem não uma teologia que o explique como um ser eleito, criado a partir da liberdade e da benevolência de uma divindade única, mas sim uma teologia que o derive de um mero acidente nos desvãos da criação, que o explique como um refugo imprevisto nos planos da divindade, a qual então abandonou a criatura ao léu num mundo degenerado e absurdo, que pouco faz lembrar os atributos virtuosos da criação. Um Deus ausente, um Deus ansiosamente procurado pelo homem, mas que ignora o valor de um tal esforço.


Harold Bloom comenta o ensaio em questão da seguinte maneira: “Para Borges como para os gnósticos, a Criação e a Queda do cosmos e da humanidade são o mesmo e único acontecimento”. “Um Deus morto ou desaparecido, ou, no gnosticismo, um Deus de fora, retirado dessa falsa criação, é o único vestígio de teísmo que resta em Borges” [Bloom: 446]. O gnosticismo interessa a Borges no momento em que é capaz de representar a estupefação do homem diante de um universo que continuamente o assombra, escondendo atrás de si seus inextrincáveis mistérios. Borges “estiliza” o gnosticismo, realçando nele sua cosmovisão potencialmente conflitante com os hábitos ortodoxos que atravessaram o pensamento ocidental por quase dois milênios de história. Em outras palavras, Borges atualiza o gnosticismo ao apresentá-lo como uma espécie de fábula sobre a condição do homem no mundo, e sobre sua relação com aquilo que o transcende, lançando sobre ele a sombra aterradora da dúvida. O gnosticismo de Borges se concentra no aspecto literário e fabuloso, que, ao contrário de se envelhecer com o tempo histórico, parece ter se alimentado dele. A ponto de Borges imaginar uma situação de conflito entre o cristianismo e o gnosticismo, e projetá-la como uma luta permanente e disfarçada que ainda continua a ser travada no fundo da realidade:



“Durante os primeiros séculos de nossa era, os gnósticos disputaram com os cristãos. Foram aniquilados, mas podemos representar sua vitória possível. Se Alexandria, e não Roma, tivesse vencido, as estranhas e sombrias histórias que compendiei aqui seriam coerentes, majestosas e cotidianas. Frases como a de Novalis: “a vida é uma doença do espírito”, ou a de Rimbaud, desesperada: “A verdadeira vida está ausente; não estamos no mundo”, fulgurariam nos livros canônicos. Especulações como a (renegada) de Richter sobre a origem estelar da vida e sua casual disseminação neste planeta conheceriam o assentimento incondicional dos laboratórios piedosos. Em todo caso, que melhor dom podemos esperar que o de sermos insignificantes, que maior glória para Deus que a de ser absolvido do mundo?” [Borges1: 70]
 


Para absolver Deus dos infaustos destinos do mundo, talvez seja necessário eximi-lo de responsabilidade pela criação. Deus, em sua grandiosa indiferença, permanece salvo, e o homem, do lado de cá da realidade, apartado inconsolavelmente dele, tem de assumir as rédeas de sua própria miséria. O gnosticismo estilizado de Borges também perfaz uma espécie de ética, que é a de por nos braços do homem a tarefa de resolver por si o problema do mal e do bem, e não derivá-lo de alguma instância transcendente. Como nos lembra Harold Bloom, Borges toma para si a ideia de Deus apenas para dizer que Deus está ausente, e, se ele efetivamente existe, pouco ou nada diz respeito aos infortúnios da criação.


    Borges inventa diversas maneiras de dizer que o homem está peremptoriamente apartado de Deus. Mais do que isso, Borges inventa com a convicção de que qualquer invenção não basta, sempre precisa de outras, sempre necessita desafiar-se e substituir-se, num processo interminável de revelação e ocultamento. A verdadeira vida pode até estar ausente, mas esse fato não nos exime de continuar a procurá-la, esteja ela onde esteja em sua plenitude. Talvez por isso o mago da pirâmide de Qaholon, personagem borgiano do conto aqui recontado, prisioneiro do cárcere físico e inquiridor da escrita de Deus, não tenha proferido as palavras apocalípticas que ele pensou supostamente ter descoberto. Agente duplo que compartilha da perspectiva divina encarnado num corpo de homem, o mago é incapaz de abandonar esse corpo, mesmo sabendo de sua relativa pequenez. Podemos imaginá-lo reinventando a escrita de Deus, podemos imaginá-lo reescrevendo um mundo não de miséria, mas sim um mundo capaz de abrigá-lo dignamente. Podemos imaginá-lo imaginando-nos, e imaginarmos-nos imaginando-o. Deus não se comove pela condição humana, mas o homem se comove profundamente por continuar a buscá-lo.




.BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995.

.BORGES1, Jorge Luis. Discussão. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

._______2. O Aleph. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Um comentário:

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