quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sombras de um Japão imaginário



          Em Cosmo Canyon repousa indefinidamente o espectro de remotas memórias, que insistem em confundir os sonhos com as representações daquilo que ainda chamamos realidade. Nesta pequena cidade construída por um povo agora
Cosmo Canyon, de MeanPete
extinto, com suas casas de madeira empilhadas numa encosta de montanha,
sobrevive um planetário, e a sabedoria acumulada por séculos de meditação e de observação dos astros. Não há melhor lugar para aprender a sopesar os valores humanos, contra o vasto céu noturno de eternidade e esquecimento. Se tivesse de realizar uma viagem para outros lugares e cidades, seria de lá que partiria, após assentar serenamente meus afetos neste mundo há muito tempo abandonado por mim.


            Seguindo diretamente ao norte, se encontra Nibelheim, cidade onde alguns de meus amigos nasceram, e mais ao norte Rocket Town, onde vi pela primeira vez uma plataforma de lançamento de foguetes. No entanto, partindo de Cosmo Canyon, eu seguiria caminho contrário, e contornaria a cordilheira que separa as duas partes do continente. Mais ao norte há North Corel, cidade em ruínas de onde parte um teleférico para Gold Saucer, o parque de diversões mais fantástico que conheci. Não posso deixar de admitir que Gold Saucer é um lugar extremamente interessante, de um apelo sinestésico que me obriga a querer percorrer todas as suas atrações. Mas alguma coisa nesse lugar me faz lembrar o onipresente capitalismo encarnado pela empresa Shinra, cuja falta de escrúpulos fez questão de alongar seu império pelos quatro cantos deste mundo.


            Portanto, em minha viagem eu trocaria Gold Saucer por North Corel, a cidade ruinosa, e lá pararia para talvez conversar com algumas pessoas que ali restassem. Muito antigamente, a cidade sobrevivia de atividades autônomas e da exploração dos minerais abundantes em suas redondezas. Recordo que foi nessa cidade em que crescera um de meus amigos, que aqui ocupava uma determinada posição de liderança. Ele foi responsável por negociar acordos que trouxeram as tecnologias de Shinra para cá, com a promessa conveniente de prosperidade e progresso. Em certo momento da implantação tecnológica os reatores explodiram, arrasando a cidade tanto quanto sua antiga economia. Muitas famílias morreram, inclusive a de meu amigo, e a empresa Shinra quis calar as reivindicações daqueles que tanto perderam. Meu amigo nada pôde fazer, foi execrado e expulso do que sobrou da cidade, e passou a alimentar um ódio declarado por Shinra.


            Obviamente, ele não mora mais aqui, mas alguma coisa na ruína da cidade talvez me atraia. Não só pelo drama que nela repousa, nem pela ideologia que nesse drama se encerra, mas pela autenticidade que essa pequena história encena. North Corel é um pequeno símbolo de muitas coisas que ocorrem por esse mundo (e também em outros mundos), e não quero esquecê-lo antes de partir para outros lugares. Pegando um trem que atravessa as montanhas que cercam a cidade, chegaria à região mais a nordeste do continente, onde encontraria a pequena Costa Del Sol. Lugar de turismo preferido entre executivos de Shinra, é também um porto de onde parte navios para o continente oriental. Num desses navios chegaria a Junon, e lá talvez eu perderia um pouco de meu tempo.

Junon, de _Rodrix_


            Junon é a segunda maior metrópole, e a mais militarizada, também construída pelo protagonismo da empresa Shinra. Aqui se realiza a maioria dos projetos de alta tecnologia, como o do gigante canhão Sister Ray, o dos submarinos exploradores das profundezas do oceano, e da nave Highwind. Junon é um centro de poder bastante influente onde desfilam figuras importantes, em que boa parte do povo é descaradamente manipulada por um controle de informação, mas onde também existe uma vida subterrânea bastante ativa. Nos bares discretos e casas noturnas da cidade é possível saber muitas coisas dos bastidores de Shinra, e na minha viagem eu gastaria algum tempo coletando algumas informações e histórias.


            Saindo de Junon, eu teria de seguir um pouco mais ao sul do continente, passando por Fort Condor, uma cidade também bastante militarizada, mas que consegue manter certa autonomia em relação a Shinra. Seguindo a leste, é possível atravessar a cordilheira de montanhas que separa o continente, passando pela pequena Chocobo’s Farm, e então seguir ao norte, contornando o outro lado das montanhas, passando por Kalm Town, e chegando à portentosa Midgar. Na minha viagem esse talvez seria o ponto de chegada, que por sua vez significaria um outro ponto de partida. Porque Midgar é não somente a maior metrópole desse mundo imaginário, mas também o lugar para onde todas as estradas, todas as pessoas, e todos os conflitos vão dar (talvez como na antiga Roma).
Midgar, de Vehementscythe1337


            Vista de fora e do alto, a arquitetura de Midgar se assemelha a uma grande pizza, seccionada em oito grandes fatias. Na borda de cada um desses cortes há um enorme reator de energia Mako, cuja manipulação é o grande trunfo de Shinra, que encontrou uma forma de literalmente sugar a energia do planeta. No centro do gigante círculo se eleva o imponente prédio que sedia a empresa Shinra, de onde emana boa parte de seu poder administrativo e executivo. A população vive em um dos oito setores do grande círculo, debaixo de uma gigante marquise que protege a cidade e cria para ela um clima todo artificial. A cidade é atravessada pelos contrastes entre a riqueza e a pobreza, com grandes prédios dominando a paisagem, e bairros carentes que formam verdadeiros guetos. Da mesma forma que em Junon, o controle de informação é ostensivo, mas nunca o bastante para apagar a evidência da miséria cotidiana. Aqui nasceram, cresceram e viveram muitos amigos e muitos não amigos, dos quais me perdi com o tempo e com os quais me encontro eventualmente; aqui o drama perene do homem que oprime o próprio homem ganha as cores mais intensas e indisfarçáveis, mesmo que sejam cores de um mundo virtual; aqui a minha jornada se encerra, e daqui partem novos sonhos e novas confusões entre minha fraca e imatura memória e aquilo que ainda insistimos em chamar pelo nome de realidade.


            Mas afinal, qual a relação entre o relato de viagem acima esboçado e o Japão, que em nenhum momento é ali referido ou sugerido? Devo dizer, a bem da verdade, que a relação é quase nenhuma, a não ser pelo fato de que foram alguns japoneses que criaram aquele mundo virtual e imaginário no qual minha viagem se deu. Do Japão real conheço quase nada, e provavelmente não conhecerei muito mais ao longo da incerta vida que ainda me resta. Poderia fazer uma pequena pesquisa sobre lugares que eventualmente interessariam à minha condição de turista por paragens japonesas, mas questiono o valor de um tal esforço. Pois se o Japão real se encontra realmente num outro canto remoto do planeta, do qual apenas recebo notícias e representações diversas e alheias, por que eu ainda insisto em dizer que ele é real para mim? Obviamente que não é, e o meu esforço de realização do “meu” Japão consistira em escolher devidamente as imagens que me chegam do Japão e adequá-las ao que se espera que seja o Japão dos “outros”, ou seja, o Japão real. Mas minha preguiça não permite isso, e talvez eu mereça ser repreendido pela professora que me propôs a me ensinar um pouco da cultura japonesa real nesse semestre.


            No entanto, se ela tiver ainda a paciência de continuar me lendo, devo dizer que o Japão que me interessa não é exatamente o daquele outro canto do mundo estranho e remoto para um brasileiro anônimo como eu, mas é o do contraste entre esse mundo e o das representações afetivas que eu fazia dele, ao passar parte considerável de minha infância atrás de uma tela. É bastante conhecida a diatribe agendada por Platão em sua República, em que surge a metáfora da caverna de onde os filósofos pretendem sair. Nessa metáfora, os poetas (e por extensão todos aqueles que lidam com a criação) mereciam o privilégio de serem expulsos da imaginária república do filósofo grego, justamente porque são eles que contribuem para aumentar a quantidade de sombras que nos obscurecem o conhecimento da verdade e o acesso daquilo que ele pretende ser a realidade. Mas o mais irônico dessa brincadeira toda é que para dizer isso Platão recorre a uma metáfora, a uma imagem, ou seja, mais uma das sombras que ele mesmo condena, e com isso ele contribui para transformar a caverna num lugar mais confuso e menos “real”. Mas se ele não se condena a si próprio ao degredo da república imaginária que ele criou, então não vejo porque eu mereceria ser expulso, nem os japoneses que criaram o mundo no qual eu pretendi viajar.



            Portanto, se me for dada a chance de conhecer um pouco mais do Japão real, antes disso eu gostaria de realizar mais uma vez o mergulho nesse mundo de sombras que eu narrei, cuja relação com o Japão está muito longe de ser evidente. Porém, se não é evidente, por outro lado ninguém pode dizer que é menos real, por mais risível que pareça minha ingenuidade. Posso não saber o que é o Japão e nem o que faria se tivesse de ir para lá, mas ao menos sei muito bem me localizar em Midgar. E enquanto não encontro (nem pretendo encontrar) utilidade para esse conhecimento, vou repousando pouco a pouco em sonhos de realidade, cuja quimera, se não me matar de vez, talvez me deixe um pouco mais forte com o tempo. O Oriente não é um referente geográfico, senão um referente imaginário.


Nota: Escrevi esse texto como trabalho final para a disciplina eletiva Sociedade e Geografia Japonesa, ministrada pela querida professora Elisa Sasaki. A proposta dela foi a seguinte: escrever um texto que funcionasse como uma espécie de roteiro para uma hipotética viagem ao Japão. Em verdade, não consegui pensar em nada sobre o que escrever dentro dessa proposta, e, na véspera da entrega do trabalho, já nas raias do desespero, tive o impulso irreverente de narrar um roteiro de viagem pelo mundo de Final Fantasy VII. Acabou que deu certo: tirei 9,5 pelo trabalho, a melhor nota entre a turma, e arranquei alguns elogios bem irônicos da professora. Acho que, às vezes, é preciso certo jogo de cintura para transformar o cinismo numa forma de honestidade. Pessoa vive nos ensinando que o poeta é um fingidor que finge a dor que deveras sente para dizê-la mais verdadeiramente. Guardo com muito carinho a lembrança simpática de Elisa, e do sushi que ela preparou para nós no último dia de aula. O único problema é que eu sou mesmo um brasileiro da gema. Bem, nem tanto assim...

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