Estou parado já não sei há quantos anos neste porto, que pela assiduidade
transformou-se em minha casa. Não há mares dobrando a vista, não há navios. O
porto em que me demoro só tem cais para o espaço, espaço-porto. O horizonte é
todo o universo, e o universo é infinito.
O longo tempo de uma espera tende a verter a esperança em nostalgia. E em
verdade eu já nem sei se sonho acordado, ou se minha vigília traduz alguma
espécie de lucidez. Nunca vi nave aqui aportando nem zarpando, nem descobri,
nos outros moradores desse porto, o mesmo interesse que o meu em siderações. Talvez
nenhuma nave nunca chegue ou parta, mas no meu silêncio mora desde sempre uma
janela apontada para estrelas. Para lá é que minha atenção converge, e não para
a massa caótica de fatos com que a vida na terra se acostuma, no esforço de
sobreviver. Penso até que não sou originário deste mundo, pois os brilhos no
céu como que guardam a promessa de retorno a não sei que antiga casa. Algum
outro porto perdido no espaço-tempo, que não é este aqui em que me encontro.
Inefável certeza, a de haver pisado em outros solos, de outros planetas,
de outras galáxias, muito antes de estagnar-me neste canto tedioso do universo.
Minha memória não guarda lembranças, guarda apenas a inclinação, o impulso, a
assimetria. Guarda apenas o atavismo de estranhar que as coisas sejam como já
estão dadas, um ponto de chegada para tudo aquilo que foi, e não apenas um mero
ponto de partida. Acostumado com o movimento celeste, meus olhos pousam para as
demandas da terra, no intuito de encontrar a mesma dinâmica. Mas a terra é um
pântano de estrelas mortas, e o que nela se move apenas reproduz a inércia de
incógnitas forças. Deus talvez quisesse renascer no meu olhar, solicitando que
o mundo fosse recriado novamente. Mas ele deve ter exilado para algum outro
planeta, pois tudo que aqui restou traz a marca de uma indefinível ausência.
Debaixo do céu na noite fria e estrelada, a terra se parece com alguma
coisa velha, alguma coisa gasta, corroída pelo tempo, e pela miséria de já ter
visto tudo o que se havia para ver. Mas o mais triste é saber que os astrônomos
já deram até nomes para todas as estrelas, para todas elas, para todas que eu
consigo ver com meus olhos nus. E eles ainda comemoram quando seus instrumentos
descobrem um novo brilho no céu, como se já não fosse suficiente mistério a
existência de apenas um astro solitário, navegando na imensidão absurda do
cosmos.
Apenas um astro solitário, e para além dele a escuridão, o além e o
desconhecido. Apenas um astro solitário, e sobre ele a apavorante diversidade
da vida, a escandalosa evidência de que a natureza revela vontade. Epifenômeno
brotado de um mar de esterilidade e caos, querendo, pedindo, implorando por
nascer, e deveras nascendo, mas também morrendo. Quintilhões de criaturas que
sentem, que choram, que gozam, que lembram, que esquecem, que sofrem, e cada um
desses mínimos impulsos com o seu valor, com o seu direito à existência. E no
seio borbulhante disso tudo esconde-se o além e o desconhecido. E nesse seio
fervilhante, bilhões de animais humanos correndo atrás de seus supostos
interesses, e todos eles crescendo, maturando, envelhecendo, todos eles
sonhando e chorando, todos eles sofrendo. E cada um deles colhendo de si alguma
singularidade, relâmpago de impulsos e desejos traçado na noite dos tempos,
dizendo no mesmo gesto olá e adeus para cada instante. Bilhões de
animais humanos, e entre eles há este indivíduo, que pensa que sabe e fala
sobre tudo isso, calculando singularidades em cifras, no centro indeterminado
de toda inquietação. E dentro deste indivíduo há mais além e mais desconhecido,
pulsando por respostas para todas as perguntas já feitas, e para aquelas que
ainda serão.
Tanta exuberância, tanta ubiquidade, e no centro disso tudo a sensação de
que nada pode ser bastante. Ainda faltam as estrelas, sempre faltarão as
estrelas, e dar nome para elas é apenas um disfarce para o espanto. O céu que
hoje contemplo não é o mesmo que eu tinha visto ontem, assim como o céu de
agora não é igual ao de um minuto atrás. Por isso, aceno com piscadela a cada
novo brilho que encontro, talvez com a esperança de que esse cumprimento soe
como familiar. Será que alguém aí em cima me reconhece? Será que alguém aí sabe
quem eu sou? Sabe o que eu devo fazer com essa coisa chamada existência? O
curto tempo de passagem entre o meu oi
e o meu adeus, no meio do qual
inúmeros disparates acontecem, talvez apenas disparates aconteçam. Alguém aí
sabe, alguém aí pode me dizer?
Talvez eu seja alguma espécie de cosmonauta. Dedicado a investigar a vida
terrestre, disfarçado momentaneamente numa máscara de vida terrestre, esquecido
da gravidade da antiga missão. Talvez a minha nave tenha se despencado na
entrada do planeta, explodindo em infinitos e raros pedacinhos, ao longo da
ampla superfície. Talvez apenas me reste recolher esses fragmentos, um a um, a
fim de reconstruir a nave despedaçada, e encontrar a tão ansiada via de retorno
a casa. Talvez, no meio desse laborioso intento, eu fosse lentamente recordando,
no milagre da anamnese, todos os minuciosos passos que me trouxeram até aqui. Talvez
os segredos de tal íntima reminiscência afinal justifiquem todos, todos os
mínimos, os mais absurdos, os mais desencontrados passos que foram dados, e com
essa revelação eu possa retornar para a casa feliz. Sim, talvez... apenas um
simples e improvável talvez...
Debaixo da imensa abóbada do céu noturno, enquanto o resto da vida dorme,
se acalma, silencia, meus sonhos despertam em desvario. Parado neste porto,
espaço-porto, cujo horizonte é todo o universo, exprimo em temerária linguagem
o pasmo de afinal estar aqui. Trago comigo rastros de cheiros, gostos, sons,
visões de um outro mundo sem correspondência com este, e agora quero saber o
que essas sombras significam. Capitão incógnito, cuja nave naufragou no mar dos
cosmos sem deixar vestígios, divulgo meu diário de bordo, com a esperança de
que seja encontrado alguém de semelhante destino. Igual minimamente na
inclinação para a estranheza, parado nalgum porto chamado também de casa. Irmão
no desconsolo de nunca retornar para aquele lar indefinido, onde éramos talvez
deveras irmãos.
O céu, o universo, o infinito, cabem todos dentro de um coração, sem que
ele próprio possa caber em si mesmo.
O céu, o universo, o infinito, cabem todos dentro de um coração, sem que ele próprio possa caber em si mesmo.
ResponderExcluirQue foda!