domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sono da escrita



Tão logo o sol irrompe da beirada do horizonte, venho para essa praia solitária recomeçar o meu ofício desmedido. Com uma incisiva ponta, vou riscando na superfície da areia figuras arcanas, que se somam entre elas para formar uma figura maior do que a soma, cuja unidade quer dizer alguma coisa que me escapa. Acompanho ansioso o tracejar do sol pelo dossel, sabendo que é o dom de sua presença luminária que me permite desenhar as figuras, ao mesmo tempo em que seu calor me tosta as costas. Resigno-me com tristeza diante do mergulho do sol por trás da barra, a interromper o meu trabalho inconcluso antes mesmo que houvesse formado aquela figura maior. Sento-me à noite na escuridão da areia por cima de minhas cifras inúteis, olhando para o céu de estrelas que mal brilham. E a maré vai invadindo a orla, apagando as figuras inscritas durante e dia, e me levando para o sem rumo do mar. No dia seguinte acordo, às vezes largado na mesma praia, às vezes noutra, mas na hora exata de contemplar a nova aurora, que me dará o ensejo de recomeçar o meu ofício.

Não desenho para a cegueira e a surdez da natureza ao meu redor, mas sim para os visitantes invisíveis dessa praia. São eles que vêm preencher a solidão desse trabalho com sua sempre renovada promessa de reconhecimento. Não tenho certeza da concretude de sua intervenção, mas muitas vezes tive a sensação de ver o meu trabalho corrigido pela mão volúvel desses espíritos. Quantos traços misteriosamente emendados ou subtraídos! Sei que a plasticidade da matéria arenosa de minhas figuras até contribui para o acaso das intervenções alheias, mas há acasos que merecem o nome menos indigno de “obra”. Eu desenho não somente com a parceria desses fantasmas que me assombram, mas também desenho contra eles, me esforçando no labor de superá-los e traçar uma figura um tanto mais perene nessa superfície degradável. Mas os fantasmas têm um gosto exigente e inconstante, e não raro passo longos períodos sem a mínima presença, mesmo que ilusória, de meus visitantes. Tempos em que me pergunto sobre o valor do meu trabalho, confrontado brutalmente com o oco da natureza ao redor.

Desenhar para fantasmas indiferentes talvez seja apenas uma das consequências de um ofício que desde sempre se assumiu como ingrato. Outra consequência é o imperativo cada vez mais flagrante do tempo. O breve período de menos de uma rotação terrestre nunca é bastante para perfazer a coesão de uma figura maior, como o sabe o intervalo incerto de uma vida humana. No entanto, o desafio da arte do desenho é assumido a despeito de sua sobrecarga, e o artista incorpora o espírito soberbo sem o qual o absurdo dessa condição o faria desabar desde dentro. E é o mesmo espírito soberbo que chama para si o centro de todas as atenções possíveis, mesmo que o espaço ao redor seja sempre surdo e cego. O egoísmo do meu ofício, submetido à questão do tempo, me obrigou, ao longo de algumas centenas de rotações, a codificar a arte do desenho numa arte dos códigos do desenho, refletindo um poder de síntese que me encheu de esperanças de completar aquele velho sonho da figura maior. Um conjunto de traços sobre a areia não era mais apenas imitação de algum objeto ou forma da natureza, mas se tornou também “re-apresentação” desses objetos e formas, como esforço de fazê-los presentes onde estavam ausentes, como mágica. A nova arte dos códigos intensificou seus próprios procedimentos, e esqueceu quase de propósito o formalismo que estava na sua origem. Chamo esse esquecimento de metafísica, e a partir dele tento recordar a história de minha desmedida arte. Vão trabalho, visto as ondas do mar terem levado embora há muito tempo o registro instável daquela verdade.

Mas tão logo me perco nesses labirintos que ergo em torno de mim, percebo a luz do sol óbvia pairando sobre minha cabeça, condenatóriamente e redentoramente renovando a oportunidade mesma de eu me perder nesses labirintos. Nessa hora, sinto o quanto o meu ofício tem alguma coisa de vulgar, alguma coisa de incapaz de lidar com a simples dádiva de haver um sol, e esse sol nem ao menos necessitar de que eu figure sua importância para mim, pois ele continuará indiferentemente a iluminar o que por essa praia for desenhado a apagado. Nessa hora, sinto que a minha soberba é uma atitude muito particular e pequena diante da necessidade de uma arte, e me pego a imaginar o destino daqueles que se aventuraram na deriva da noite.

Quando a maré sobe e eu me largo sob a vontade do mar, costumo estar dormindo, e me sobram dessas viagens indefinidas apenas as mãos de sombras com que o sonho agarra suas lembranças. Mas ainda eu nunca despertei do sono em que repouso à noite. Talvez me reste agora inventar a arte de boiar à tona do sonho desperto, e encontrar a nova clarividência daquilo onde é tudo escuridão. Nesse novo ofício, eu me afirmaria sem o fundamento de uma areia em que pisar, nem o traço numa superfície em que falsamente risco minha imortalidade. Desde sempre o mar ironizou todas essas ambições, e nenhuma delas resistiu ao espraiamento da maré alta. Eu deveria assumir o desafio de singrar as superfícies líquidas, tendo como horizonte um céu de infinitas estrelas que mal brilham.

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