“Chega onde em sono ela mora
e vê que ele mesmo era
a Princesa que dormia”
Pessoa, “Eros e Psique”
Amo a menina que mora na casa em frente à minha, do outro lado do abismo
que nos separa.
Sento pela manhã na varanda a esperar que ela desfile seus olhos claros
pela janela, para depois começar a encenar um breve sorriso e logo desaparecer
na escuridão de seu quarto. Distante que estamos, não tenho certeza se o
sorriso era para mim, nem se ao menos havia algum sorriso estampado naquele rosto
redondo. Na dúvida, começo a vestir a alma de riso, e passo o resto do dia a
imaginar a possibilidade de que ela, em sua janela, estivesse a procurar o meu
riso, e não encontrasse, ou encontrasse apenas uma dúvida.
A menina do outro lado do abismo talvez gostasse de visitar a minha casa.
Conheceria o cheiro de móveis mofados, o eco de espaços vazios, o zelo dos
velhos solitários. Talvez ela tivesse um refinado gosto decorativo, e começasse
a pintar minhas paredes com cores de caos, e a virar os meus assentos de
ponta-cabeça, e a quebrar umas tranqueiras que eu costumo guardar. Nós
ficaríamos a preencher as noites com a eterna novidade de nossa humana
presença, noites quando melhor se ouve o urro dos monstros que se agitam no fundo
do abismo ao redor. Depois contaríamos todas as estrelas e daríamos nomes a
elas, fazendo promessas para nossa próxima viagem sideral. Mas por agora, a
menina não está aqui. Também me aflige a ideia de que, talvez, ela detestasse
visitar o meu recanto, achando-o antiquado demais para sua impaciência. Talvez
ela pense em visitar outras casas que não a minha, ou talvez ela queira muito
mais do que apenas invadir espaços alheios e busque, para além disso, o rumo do
infinito.
Na verdade, sentado tediosamente na varanda, eu mal consigo enxergar o
perfil de alguém que passeia pela janela de uma casa do outro lado do abismo.
Acho que é ela, pois aos menos espero do tempo que aqui gasto o simples poder
vê-la. Mas talvez não seja, e o meu tédio não produzira nada mais que um sonho
vão. Eu sei que eu deveria me arriscar a fugir de minha própria casa, a
percorrer as bordas indefinidas do abismo, que se estendem até depois do
horizonte. E é bem possível que eu encontrasse em algum lugar desse além do
horizonte uma ponte sobrevoando o abismo, a me levar a outro lugar tão mais
arriscado e tão mais desconhecido. E nesse outro lugar eu encontraria outra
ponte e outro abismo, e notaria que a minha vida seria como uma viagem a percorrer
uma rede de pontes e abismos interligados, nos quais eu estaria sempre a me
perder e sempre a me achar. Mas sei também que tão cedo me aterraria a
lembrança de estar cada vez mais longe daquela menina, e talvez nunca mais
pudesse me esbarrar com ela. Sobraria-me a saudade de uma casa já então remota,
e o novelo tristemente acumulado de intentos perdidos, deixados para além de
vida e de viagem. Nas estradas o encontro também é uma coisa muito rara, e um
sem número de outras meninas seriam deixadas pelo caminho.
No entanto, tudo isso é devaneio, tudo é mera especulação. Sentado na
solidão de minha varanda, eu nunca saberei dos erros que cometeria, se não
insistisse em permanecer a contemplar uma moldura de riso de menina, que talvez,
já não sei mais, desfile numa casa do outro lado do abismo. Mesmo a capa de
riso com que visto minha alma se desgasta ao longo dos anos de poeira
acumulada. E as rugas que agora sulcam meu rosto costumam mentir ao menino que
eu era antes de me sentar à varanda de casa. Surpreendo-me diante de tão
subitânea metamorfose. Ontem mesmo eu havia começado a sonhar, ontem mesmo eu
havia me deparado com o riso enigmático da menina, a quem eu quis tanto. Um
ontem indeterminado e espectral, que pode ter sido há um dia atrás, pode ter
sido há milênios. Já não sei mais quando foi ontem, nem sei se ainda amo a menina,
cuja imagem em mim continuamente se desfaz. Restou apenas este animal vetusto,
que lembra e sonha acerca dessas coisas, e que ainda vive, ainda respira.
É preciso transpirar o amor sonhado a cada passo dado no mundo. Mas antes
disso, é preciso dar algum passo. Sigo porta adentro e ajeito na mochila
algumas poucas coisas, o bastante para uma indefinida ausência. Olho-me no
espelho e vejo-me novamente jovem, novamente cheio de promessas, sem rugas, sem
gravidade, e também sem esquecimento. Dedico um último olhar para a paisagem de
minha varanda, e nesta hora sei a verdade.
Nunca houve casa nem janela do outro lado do abismo. O riso de menina não
está ali, nem talvez esteja em nenhum lugar. Desta vez, sou eu quem rio, sem
esperança, pego a mochila e abandono o resto das tralhas dentro de casa. Não
devo encontrar a menina, pois ela sempre esteve comigo...
Muito bom Nunes, gostei muito, principalmente do final.
ResponderExcluirGrande abraço,
Denis.
Daniel,muito legal o teu texto!!!!Faz pouco tempo que te conheço,mas já deu para perceber que você é extremamente talentoso!
ResponderExcluirEspero que a cada dia mais você possa expressar com palavras o que existe de melhor dentro desta capa silenciosa na qual você se reveste.
Já que não fala muito como eu( rsrsrsrsrsrs)que pelo menos possa nos mostrar o incrível dom da palavra.
P.S: Gostei do blog,principalmente do título e subtítulo.
Rachel Chiote.
combina com aquela frase que uma vez você disse:
ResponderExcluir"a mulher que eu amo não existe"
perspectiva interessante
amei odiar o texto! ^^
Dani,gostei muito desse texto. Vc continua sendo meu escritor preferido.
ResponderExcluir(Vizinha)
Parabéns, Daniel! Ótimo texto! Bjs
ResponderExcluire enigmatico, sofrido,quase bucólico, mas a s contruçao das frases dentro da riqueza que ali denota,criando saidas sao pontes , pontes dentro do imaginário de cada um! gosto vc e bom naquiloo que faz . acredite e confie um grande abraço, viva mais suas emoçoes!!!!!!!! espadasse!!!!!!! exploda no sentido contrutivo, assim renascera sempre va no fundo.
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