Antes de ir-me embora desta cidade, muitos anos atrás, enterrei debaixo
da goiabeira no meu quintal uma caixa, cujo conteúdo pretendia reaver um dia.
Passei a morar numa cidade em que não havia quintais, nem goiabeiras, nem
promessas de infância, onde ao longo do tempo fui me esquecendo do conteúdo
daquela caixa que havia abandonado. Cá estou de volta à minha antiga casa,
agora demolida, tornada um terreno baldio, sem indício de goiabeira nem
vestígios de passados moradores. Tenho comigo apenas a lembrança de que havia
uma caixa em algum lugar, guardando alguma coisa que eu nunca mais poderei ter.
Mas o que exatamente é essa coisa que eu guardei? É bem possível que seja
um pequeno caderno, com anotações acumuladas durante aquele tempo em que ainda
aprendia a escrever. Nesse caderno, talvez eu anotasse seletivamente apenas lembranças
que alegrariam um futuro adulto: a impressão de sorriso no rosto de meus pais,
o dia em que ganhei o meu primeiro videogame, os mimos de meu cachorro quando era
ainda filhote, o banho de chuva inesperado durante o verão, o cheiro e o gosto
de minha goiabeira, os olhos daquela menina... Depois de tantos anos, eu me
perguntaria por que havia conservado aquelas boas lembranças tão longe de mim,
ressentido que talvez estive da necessidade de mudança. E mesmo sabendo que
aquele caderno pintava memórias parciais, eu o levaria para todos os cantos,
como refúgio de um mundo que não se basta em caber numa simples folha de papel.
Mas também é possível que não houvesse na caixa uma pequena lista de saudades,
e sim alguma coisa um tanto mais terrível. Já naquele tempo, eu me iniciava nos
sentidos mágicos e obscuros da vida, como um feiticeiro aprendiz. E talvez eu
houvesse selado a caixa com uma maldição em miniatura, condenando quem a
abrisse ao mesmo destino de Pandora. A caixa conteria a consciência de tudo
quanto sucedeu sobre meus dias, desfiando a interminável caudal de catástrofes
que em geral definem uma vida humana. A caixa conteria a imagem vertiginosa de
minha responsabilidade, à espera do gatilho desmedido de uma curiosidade para
fazer desabar sobre meus ombros o peso abissal de todos os choros que eu chorei
ao longo desses anos. A caixa me revelaria o rastro que uma vida humana, sem
saber, carrega atrás de si, rastro de dores, de desgraças, de misérias, que se
arrastam dependuradas na corda de toda triunfante e mínima vitória. A caixa me
revelaria a monstruosidade da indiferença, e eu a fecharia justamente quando me
fosse dado ver a contraparte do monstro que sou, a soma de pequenas felicidades
que afinal justificam que alguém ostente uma inelutável esperança.
Porém, talvez a caixa não contivesse a consciência de meus males. Talvez
ela guardasse um enigma que eu me esforcei para esconder de mim mesmo. Guardasse
um mapa com marcações que definissem todas as escolhas que eu tomei ao longo
desses anos. Como um pirata descuidado, eu criara aquele mapa, e decorara cada
uma de suas minuciosas marcações, enterrando o segredo do que aquilo realmente
significava. Na obsessão de seguir fielmente as instruções, eu me esqueci ao
longo do tempo que eu havia criado aquele mapa, e que estava de certa forma
sendo determinado por ele. Quem acredita na verdade de um destino, simplesmente
ignora que poderia haver outros destinos, que poderia haver outros caminhos
para a vida que se leva, cuja possibilidade abole a própria ideia de destino. Talvez,
ao desenterrar aquele mapa, eu tivesse percebido as inumeráveis alternativas de
caminhos que eu nunca segui, as avultantes escolhas que nunca fiz, que me
levassem a tantas outras maneiras de ser eu mesmo que eu não mais poderei ser.
No entanto, talvez a caixa não guardasse a senha de minhas escolhas.
Talvez ela abrigasse um demoniozinho cuja impertinência, na correria dos dias e
das mudanças, eu preferiria para sempre esquecer. Aquele demoniozinho, que
quando eu abrisse a caixa me fizesse a pergunta definitiva da existência: se eu
amo suficientemente minha vida, a ponto de, se me for dada a oportunidade,
repetir minuciosamente os mesmos gestos, os mesmos erros e acertos, os mesmos
prazeres e sofrimentos, cada minúsculo ato e acontecimento, que me trouxeram
todos até ali naquele instante decisivo, após o qual a mesma repetição se daria
eternamente, como um ciclo, sem cessar. E então, que resposta eu daria para
esse demoniozinho? Diria um sim, como
prova trágica desse suposto amor, que precisa ser forte o bastante para
suportar tamanha provação? Diria um não,
na indignidade de encontrar em mim secretos ressentimentos, covarde por fazer
da vida aquilo que outros fizeram por mim?
Todavia, talvez a caixa não fosse morada de um policial da existência. É
bem possível que nela se contivesse a mais ambiciosa de minhas brincadeiras.
Dentro da caixa eu encontraria a indicação de algum outro lugar onde eu pudesse
exumar outra caixa com a indicação de outro lugar com outra caixa, e assim até
o infinito. De alguma forma de que eu não me lembrasse, eu havia passado boa
parte de minha infância enterrando caixas com indicações de lugares que
tivessem algum significado para mim: debaixo de minha goiabeira, na escola em
que passei longos anos, nas ruas em que moraram tantos amigos... Se eu ousasse
percorrer todos os caminhos a desenterrar todas as caixas, talvez eu refizesse
exatamente a mesma trajetória que afinal me trouxe até aqui, sem deveras abafar
a curiosidade que me pôs na roda dessa brincadeira. E é bem possível que eu
percebesse que ao longo desses anos ainda continuava a enterrar caixas sem ao
menos me dar conta disso, e que talvez fosse um absurdo correr em volta desse
jogo insano, a perfazer um círculo dentro do qual eu nem pudesse encontrar quem
sou.
Mas talvez a caixa não desencadeasse a roda de meus dias. A verdade é que
eu estou diante do lugar onde deveria haver caixa, e não há nem o mínimo sinal
dela. Tenho de voltar para a cidade onde agora moro, desistido de reaver o
conteúdo daquela antiga lembrança. Sei que havia uma goiabeira em algum lugar,
mas jamais encontrarei o que debaixo dela repousava. É como se a caixa
estivesse vazia, e a minha missão fosse retornar ao presente com o legado
daquela desmemória.
Mas o estar vazio não quer dizer que se abriga nada, pelo contrário, quer
dizer que se abriga tudo. Vou inventar o que havia dentro dessa caixa, e vou
inventar que essa caixa existira. Dentro dela caberia um mundo, mas um mundo
que habita somente na distância.
Excelente texto Daniel
ResponderExcluirPerfeito... queremos mais !!
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