O Pequeno Príncipe existe como para cumprir um destino trágico em nosso mundo. Desde sempre sua finalidade é simplesmente morrer. Quando a infância aparece diante de nós e nos ilumina de graça, nossa reação condicionada é ignorá-la e limitá-la a seu nicho específico. Prescindimos da infância para depois erguer em sua homenagem um altar chamado nostalgia.
O Pequeno Príncipe sai de seu planeta por amor à rosa, seu objeto singelo, seu capricho, sua razão de ser. Nessa viagem, faz pausas em planetas habitados por adultos em suas representações neuróticas, afeitas à vulgaridade do cotidiano. O amor à rosa da infância é incapaz de ser transmitido ao mundo adulto justamente porque está além ou aquém de palavras. Dizer o amor é esterilizá-lo, é pô-lo numa cela abstrata de ideias, estranha à sua obviedade singela. Cada adulto em seu planeta é um mundo com claras limitações. O planeta do Pequeno Príncipe é limitado também, mas, ao contrário dos adultos, em sua pequenez não há a pretensão de abarcar o universo numa lógica qualquer. Cada adulto, de dentro de sua redoma planetária, parece ter uma palavra final e absoluta para a infinitude que o engole. Todos são tão completamente cheios de certezas, que é preciso minimamente a interlocução com uma criança para que se revele sua ridicularidade relativa. Mas o Pequeno Príncipe nada tem a dizer a essas pessoas; ele recorre sempre ao silêncio, à não-palavra, à perplexidade, ao mistério: isso que toda infância tem de mais sagrado.
A viagem do Pequeno Príncipe deságua na Terra, essa imensidão de adultos, nem por isso menos limitada. Quem há de, nessa imensidão, se solidarizar com a história de uma rosa singela num planeta distante? Nosso mundo realista varre a fantasia para debaixo do tapete, em nome de inumeráveis pragmatismos. Apenas o narrador-personagem de Saint-Exupéry trava uma amizade ligeira com a infância, uma amizade melancólica como que pressentindo o fim iminente, cheia de saudades do que já se vai perdendo. Porém, mesmo ele já não pode ajudar o Pequeno Príncipe, chegou tarde demais à fonte de toda graça da vida, também se tornou nostálgico. O deserto é o que resta ao Pequeno Príncipe, e lá é onde ele vai encontrar a serpente. O ser da língua bífida, que diz coisas sobre as quais não se pode confiar plenamente. Ao fim de tão longa e desesperançada viagem, sua mordida é a única chance de fazer o Pequeno Príncipe voltar ao seu planeta pequeno e fantástico, voltar ao seu amor à rosa. Sua mordida dará fim a essa jornada inútil no reino dos homens úteis, com o preço evidente da morte.
Na correria de nossas vidas importantes para nós mesmos, não percebemos os pequenos príncipes que nos rodeiam, iluminando a vida de outros sentidos. Quando eles esmorecem, atribuímos sua existência a algum ideal passado, sempre distante de nós. Resta a todos aqueles que viram algum pequeno príncipe passar por essa terra um gosto ligeiro da infância que vamos perdendo. A morte do Pequeno Príncipe é uma necessidade para se estar no mundo brutal a que nos acostumamos. Um mundo sem graça e desonesto, ausente do amor à rosa por quem daríamos a vida.
Nota: Escrevi esse texto no final de ano de 2009, após a leitura do referido livro, no meio de uma de inumeráveis depressões. Portanto, peço que tenham pena, não de mim, mas do resultado infausto que aqui se encontra. Perdoem o seu tom que, não raras vezes, resvala no moralista, e cai no ledo engodo de idealizar a infância sob os olhos de um burro velho. No entanto, deixo o texto por aí pois creio que a leitura realizada nele não é de todo vulgar. Também, não é para tanto: a um céu enigmático e melancólico, qualquer olhar lançado se depara com alguma de suas incontáveis constelações.
Nota: Escrevi esse texto no final de ano de 2009, após a leitura do referido livro, no meio de uma de inumeráveis depressões. Portanto, peço que tenham pena, não de mim, mas do resultado infausto que aqui se encontra. Perdoem o seu tom que, não raras vezes, resvala no moralista, e cai no ledo engodo de idealizar a infância sob os olhos de um burro velho. No entanto, deixo o texto por aí pois creio que a leitura realizada nele não é de todo vulgar. Também, não é para tanto: a um céu enigmático e melancólico, qualquer olhar lançado se depara com alguma de suas incontáveis constelações.
Não sei se você continua vivo, mas quero dizer que gostei muito da sua abordagem.
ResponderExcluirOlá Helena!
ResponderExcluirVivo eu também não sei se continuo, mas é sempre bom ver alguém manifestar-se por aqui.
Obrigado!
Um grande abraço.
De fato uma admirável reflexão, nobre Daniel. Parabéns !!
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